FABRÍCIO CARPINEJAR

Cheiro de guardado

O olfato é um motor da memória


Publicado em 17 de fevereiro de 2021 | 12:47
 
 
 
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As roupas mudam o cheiro perto do mato.  

Você pode supor que é cheiro de guardado, mas é a fragrância das árvores, da neblina, do orvalho que se infiltra nas peças.  

Todo mundo que mora nas montanhas será impactado pela textura de suas vestes. O amaciante e o sabão em pó não superam o elã da natureza.  

O olfato é um motor da memória. A partir dele, reprisamos as férias nos chalés, e o olfato passeia pelo passado sem hora para voltar à consciência.  

Quando fui jantar pela primeira vez com Beatriz, em Belo Horizonte (eu ainda morava em Porto Alegre), arrisquei usar um casaquinho verde, encomenda da minha avó falecida, costurada pelas suas mãos. Tem gente que coloca um escapulário para dar sorte, eu vesti o próprio escapulário.  

Eu parecia um tio com aquela lã inadequada para um match. Amigos me dissuadiram do figurino, falando que envelhecia cinco anos na aparência, que iria espantar qualquer pretendente.  

Eu nem quis saber de jogar, de empregar truques de sedução. Optei por algo pessoal, uma herança vinda de Guaporé (RS), terra natal da nonna. 

Meu constrangimento foi aumentando porque Beatriz surgiu maravilhosa, com um vestido floreado, um jardim exalando pólen – só faltava a escolta das abelhas.  

Eu lembrava um psicopata dos filmes de Hitchcock, com aquele tricô justo no corpo; já a sua leveza se assemelhava a uma comédia romântica ambientada em Toscana.  

O engraçado é que meu perfume não vingava no tecido. Eu saí para o restaurante com aquela sensação de ter recém-cortado achas de lenha no quintal.  

Entreguei a Deus.  

Eu me sentia tolhido, nervoso, arrependido do meu ato de coragem. Não levantava direito os braços para que meu incenso de armário não empestasse o ar.  

Quem já não sofreu com alguma saída lembrando que se esqueceu de pôr o desodorante? E suou frio com medo de ser desmascarado?  

Atravessava esse inferno da inadequação, que atingia em cheio a articulação das minhas frases. Não falava nada com nada. Ria com frequência para me mostrar interessado.  

Já pensava em não prolongar a noite, ficar mesmo na sobremesa, deixar a conquista para um dia menos desesperado.  

Até que Beatriz se movimentou para se sentar ao meu lado, não mais frente a frente. Tínhamos dividido um prato.  

Ela deitou carinhosamente a cabeça no meu ombro. E vi, com o devido receio, o seu rosto esfregar de um lado para o outro no casaquinho verde, tipo aquele beijinho de criança feito com o nariz.  

Fechei os olhos para receber um comentário maldoso. Não havia como não identificar o olor.  

– Que cheirinho gostoso da serra do Cipó. Traz paz, tranquilidade, tipo sachê de guarda-roupa – ela comentou.  

Eu estava realmente guardado para ela. Nosso beijo aconteceu depois dessas palavras. Vários beijos. Vários anos de beijos.  

Às vezes, ela ainda me chama de “sachê”, e eu me recordo com orgulho de nosso primeiro encontro e agradeço secretamente a flechada certeira de minha avó. Ela é que escolheu Beatriz para mim, muito antes de nos conhecermos.

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