FABRÍCIO CARPINEJAR

Google tradutor

Não entendi por que ela se transformou num dicionário de repente, cheio de sinônimos.


Publicado em 29 de novembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Os dialetos regionais podem causar sérios constrangimentos, vexames amorosos, empilhar gafes, isso quando não expõem uma relação a uma tensão diplomática.  
 
Quando namorávamos, Beatriz não achava os seus brincos de prata de coração.  
 
Parece bobagem entrar em desespero por um detalhe, porém ela tinha feito a combinação de suas roupas pela cor dos acessórios. Atrasada para o serviço, não recuperá-los traria o retrabalho de escolher um novo figurino.  
 
Eu logo quis ajudar:  
 
– Vai encontrar no seu bidê!  
 
Caminhou ao cômodo e não comentou mais nada. Raciocinei que havia solucionado o caso. Silêncio nessas horas costuma ser a percepção de um engano: descobriu que havia sido ela mesma que tinha colocado o par fora do lugar e se arrependeu de ter me incriminado à toa.  
 
Ela é pisciana, sempre me pergunta onde estão as suas coisas. Mesmo quando ainda nem começou a procurar. Ela pensa em reaver algo e já questiona. Até me acostumei com o seu comportamento de permanente “achados e perdidos”.  
 
Outro dia, lá veio com uma nova necessidade:  
 
– Onde está a minha escova de cabelo?  
 
Respondi de bate-pronto, pois a minha memória fotográfica de espaços não costuma falhar:  
 
– Eu vi no bidê!  
 
Ela foi ao quarto, e não localizou. Estava sentado no sofá lendo jornal, tentando ler o jornal; na verdade, não saía das manchetes, refém de sua pressa geográfica.  
 
Ela surgiu toda desaforada à minha frente:  
 
– Por que minha escova estaria num lugar sujo como o bidê?  
 
– Como assim sujo? Não notei que estava sujo. Você que deixou ali ontem depois de secar os cabelos.  
 
– Eu nunca colocaria minha escova no bidê.  
 
– Mas você sempre usa o bidê.  
 
– Justamente, ele é sujo porque sempre usamos.  
 
Eu fiquei com medo de algum transtorno obsessivo-compulsivo, que não tinha reparado até então: será que tinha que passar um pano com lustra-móvel a cada manhã no bidê? Ela se incomodava com a simples poeira de um dia? A faxineira não tinha vindo ontem?  
 
– Desde quando bidê é lugar para deixar objetos? Você está brincando comigo? É nojento... 
 
– Nojento o quê? 
 
– Saber que aquilo que passo em meus cabelos está no bidê.  
 
– Não tenho culpa de suas manias, cada um tem o seu bidê. Eu cuido do meu.  
 
Não nos acertamos daquela vez. Ficou um mistério no ar, uma rusga, um atrito insolúvel. Eu a considerava séria demais, ela me via com palhaçadas inoportunas. 
 
O único abajur do quarto se localiza do lado da cama da Beatriz. Numa noite, pedi para que ela desligasse. Já quase dormia segurando o livro.  
 
– Pode apagar a luz do seu bidê?  
 
– Bidê? Não seria mesa de cabeceira, móvel branco, cômoda, gaveteiro?  
 
Não entendi por que ela se transformou num dicionário de repente, cheio de sinônimos.  
 
– Sim, do bidê.  
 
– Isso não é bidê, bidê é para lavar as partes íntimas, no banheiro, ao lado da privada.  
 
– Da patente?  
 
Rimos com a eureca dos impasses entre mineiros e gaúchos. Não iríamos mais correr riscos. No Rio Grande do Sul, chamamos a mesinha de “bidê”. Por pouco não nos separamos por falta de um Google Tradutor entre nós.

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