FERNANDO FABBRINI

A.C., D.C.

Passado o primeiro impacto, parece que vamos criando novas rotinas e buscando o equilíbrio em meio à tempestade.


Publicado em 02 de abril de 2020 | 03:00
 
 
 
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Passado o primeiro impacto, parece que vamos criando novas rotinas e buscando o equilíbrio em meio à tempestade. Em casa, tentamos nos abstrair da avalanche diária de terror despejada pela imprensa e pelas redes. E assim dedicamos mais tempo ao que importa no mundo: família, amigos, bichos e afetos.

Na mudança de hábitos até me animei a escrever sobre o vírus; tinha prometido não acrescentar mais “opiniões” à insuportável onda de bobagens reinante. Refletindo, procuro ter em mente a raridade de tal evento para nós, pobres mortais habitantes do planeta azul.

Em poucas palavras, nunca a humanidade passou por isso. Pelo menos nesse aspecto seremos mais vividos e experientes que Galileu, Newton, Edison, Einstein, Stephen Hawking; é mole? Em milhares de anos da dita civilização - sem contar os tempos dos dinossauros e pedras lascadas - nunca algo dessa amplitude e abrangência afetou todas as pessoas do mundo, direta ou indiretamente.

Ao longo dos seus supostos 4,5 bilhões de anos comemorando aniversários, jamais a nave-terra mexeu tanto nos hábitos e nos medos de todos seus tripulantes, sem exceção, sejam de qual raça forem; em qual latitude habitarem; qual língua falarem. Podem ser capitalistas selvagens ou comunistas ferrenhos. Espíritas, budistas, cristãos, jainistas, ateus, muçulmanos, fundamentalistas dessa ou daquela crença. Ricos, pobres, donos de iates em Monte Carlo ou de casebres numa cidadezinha do interior do Brasil. Pegou geral.

Inevitável pensar logo em James Lovelock. Aos 100 anos de idade, o danado continua consciente, lúcido e orientado - talvez para provar sua Teoria de Gaia, quando afirmou ser a Terra um organismo vivo e não apenas uma mistura aleatória de massas incandescentes girando pelo infinito. Não, não: aqui reina um equilíbrio, uma força e um poder superiores. Vêm de uma rainha, de uma velha senhora de nome Natureza.

Como em todo reinado, a rainha tem defensores, aliados, detratores, rivais, puxa-sacos e aproveitadores. E bobos da corte aos montes, é bom que se diga. Serena, ela dita suas regras; faz a semente brotar com o calor do sol após a chuva; multiplica desde protozoários a rinocerontes; move as nuvens; cutuca placas tectônicas e acende vulcões; ordena as marés e as correntes marinhas.

Aí, um belo dia, a rainha perdeu a paciência. Chutou o trono e os baldes cheios d’água de goteiras vindas do degelo dos polos. Pê da vida, apontou para os bichos aprisionados nos mercados chineses; nos zoológicos, nos circos. Estava farta de limpar o ar poluído por milhões de automóveis, borrifando sprays de oxigênio feito louca. Cansou de botar o termômetro no sovaco do El Niño e constatar a febre persistente do garoto.

Então, pisando duro no gramado do castelo arrasado pela seca, saiu do sério e pediu um tempo para discutir a relação. Do alto da torre, ela berrou seu édito, ouvido nos quatro cantos do mundo:

- Tô avisando, seus predadores! Podem mudar de vida, senão... o bicho vai pegar!

Aviões aterrissam. Trens, metrôs e automóveis voltam às garagens. Fábricas interrompem suas linhas de montagem e chaminés não sopram mais fumaça. Peixes dourados e cisnes brancos - solenes - passeiam pelas águas agora azuis de Veneza. Satélites indicam uma queda inédita nos níveis de gases poluentes na atmosfera. As cidades estão silenciosas, há tempo e espaço para contemplar estrelas, pensar na vida e no sentido do que fazemos aqui.

A.C., D.C. Antes do Corona e Depois do Corona. A humanidade acaba de ganhar uma nova marca para inspirar sua história.                                               

  

 

 

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