FERNANDO FABBRINI

Foi mal, bicho

A China precisa humildemente se desculpar. E fechar, de uma vez por todas, seus imundos mercados de animais.


Publicado em 26 de março de 2020 | 03:00
 
 
 
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Na China existem inúmeros mercados iguais ao de Wuhan onde o coronavírus fez sua mais recente e assustadora mutação. Não há dúvida: das primeiras 41 pessoas infectadas, 27 transitaram por aquele local nos últimos meses de 2019.

Mercados de animais surgiram na China por volta de 1970 quando a fome matou milhões de pessoas. Na tentativa de enfrentar o problema, a ditadura comunista abriu imensas agroempresas estatais que monopolizaram a criação de galinhas, porcos e bois.

A única opção dos modestos produtores excluídos do sistemafoi reforçar o cardápio e o orçamento doméstico com coelhos, cobras,cágados, morcegos. Não só os consumiam como passaram a vendê-los nos mercados urbanos. O governo fez vista grossa. Para sair da miséria, podia tudo.

Pressionada internacionalmente, em 1988, a China criou uma frágil lei de proteção da vida selvagem na qual os bichos foram classificados como “recursos naturais”. Novas estatais encheram gaiolas com ursos, guaxinins, veados, gatos-do-mato, répteis e outras espécies em alta escala para abate.

Como qualquer chinês poderia se beneficiar da nova classificação, as vendas paralelas explodiram, causando forte impacto no meio animal.

Em 2002, num mercado em Guangzhou, um vendedor foi internado com pneumonia. Na sequência, a nova doença matou 774 pessoas em 29 países. Surgia a SARS - Síndrome Respiratória Aguda Grave, de origem aviária. Com o susto, a ditadura chinesa tentou reduzir o risco dos “wetmarkets”.

Porém, perdeu para um lobby poderoso: o das indústrias chinesas que produzem remédios, tônicos musculares e afrodisíacos; receitas tradicionais enganosas com ingredientes extraídos dos bichos.

O pangolim, um pequeno mamífero asiático de pele escamada, é um deles. Sua carne é considerada iguaria e as escamas são usadas nas beberagens. As recentes pesquisas do Covid-19 indicam serem os morcegos – também vendidos nos mercados e comidos em sopas – os “reservatórios” do vírus.

No entanto, estes vírus precisam passar por outra espécie para alcançarem os humanos – no caso, o pangolim, denominado "hospedeiro intermediário".

Há muitos pangolins nos mercados chineses. Estão lá engaiolados, em condições revoltantes, ao lado de porcos, lebres, macacos, pavões, cervos. As gaiolas são empilhadas sem cuidado ou piedade.

Os animais de baixo ficam impregnados pelas secreções dos de cima; a imundície que escorre: urina, fezes, sangue, pus. A pedido do freguês, são mortos e eviscerados ali mesmo, sem a mínima higiene. Um horror. Biólogos e ambientalistas vêm denunciando isso há tempos, mas a riquíssima ditadura chinesa controla a mídia e as redes sociais, além de “desaparecer” com médicos, jornalistas e cidadãos que se atrevam a tocar no assunto.

Em 2004 e 2006, gripes aviárias. Em 2010 e 2013, dois surtos da peste suína brotaram dos mesmos focos. Agora, o Covid-19. Ora: até quando a humanidade vai conviver com esse absurdo em nome de “parcerias comerciais” ou “respeito às tradições”? No caso da dengue, você aceitaria que o morador da casa ao lado acumulasse latas velhas cheias de água só em nome da boa vizinhança?

A China precisa humildemente se desculpar - não só com o Brasil, mas com o mundo inteiro. E fechar, de uma vez por todas, seus imundos mercados de animais. É gravíssimo e inadiável.

Muito mais que os humanos, os bichos estão sintonizados com a essência da qual nos originamos e à qual devemos respeito. Não têm ideologia, não discutem política, não acumulam riquezas - seguem apenas seus instintos, participantes essenciais da misteriosa ordem do universo.

Acima de tudo, são seres livres; não suportam maus tratos, cativeiros, ditaduras. Jamais acue um bicho ou trate-o sem piedade: cedo ou tarde, a vingança aparece.

 

                                                                              

 

 

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