FERNANDO FABBRINI

Pandemônio

Uma fábula ainda inacabada


Publicado em 17 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Era uma vez um planeta azul que flutuava no espaço em meio a milhões de outros corpos celestes. Na verdade, ele não passava de um grão de poeira, uma titica, um cisco, um quase-nada se comparado aos demais. Nele existiam incontáveis seres vivos – bactérias, protozoários, amebas, plantas, fungos, peixes, aves, crustáceos, corais, moluscos, mamíferos – enfim, tinha de tudo.

Entre os mamíferos figuravam os humanos, bípedes eretos que se achavam fodões, poderosos, imbatíveis, etecetera, considerando-se, por isto, donos e beneficiários de todo tipo de vida que por ali circulava. 

Embora o planeta azul fosse velho pra caramba – algo em torno de 4,5 bilhões de anos – a aparição dos humanos acontecera há pouco tempo. Se a gente imaginasse a história do planeta como um período de 24 horas, a presença do bípede ereto sapiente no planeta seria equivalente aos míseros últimos 3 segundos.

Pois bem: apesar dessa presença histórica e temporal insignificante – repito – alguns bípedes eretos se achavam os reis da cocada preta, geniais, imbatíveis e coisa e tal, mandões e controladores da Vida; senhores absolutos do mundo. Diziam uma senha e o portão da garagem se abria. Com um touch-screen mudavam a decoração da sala de estar. Mais um e encomendavam sushi direto do Japão. Nos planos materiais e sutis não haviam limites para mais nada. “Podemos tudo e qualquer coisa” – se gabavam.

De tão arrogantes, os bípedes resolveram também controlar a velha Vida – sem antes saber como e por que estavam no planeta, quando iriam encarar a inevitável morte, como funcionavam seus organismos independente de suas vontades, qual energia movia o Sol e sustentava a Terra; qual força transformava a semente em árvore, o dia em noite e outros mistérios que, de tão comuns, deixaram de ser objetos de contemplação maravilhada.

Essas tentativas de dominar a Vida às vezes recebiam o disfarce de “ciência”, “evolução”, “avanço tecnológico” ou “conhecimento”. Nesses casos, eram apenas manobras de bípedes vaidosos para se sentirem acima de seus semelhantes.

Foi aí que, num belo dia, num certo laboratório, deu ruim. Não se sabe se por acidente ou de propósito um cara sacudiu um tubo de ensaio, mexeu num béquer, misturou numa pipeta o soro de uma ampola com uma meleca verde. Pronto: a Vida deu o troco:

- Xi! Agora não é mais comigo – disse a Vida, arrepiada. Tô fora! Virem-se!

E assim brotou um novo bicho diferente que não obedecia padrões até então conhecidos; não era influenciado pelo clima, nem pelo meio ambiente, nem pela localização geográfica. Atacava bípedes de todas as idades, raças e culturas mundo afora. Circulava onde queria, fazia onda, aparecia onde bem entendia. Guloso, multiplicava-se em mutações infinitas para seguir vivendo.

Pânico geral. De uma hora para outra, os bípedes perderam suas certezas, suas onipotências e começaram a brigar. Bota máscara! Não bota máscara, não adianta! Vacina todo mundo! Mas vacinar resolve? Essa vacina é boa ou não funciona? Dá efeito colateral? Proibida a aglomeração! Não, libera o confinamento! Toma tal remédio! Não toma esse, só toma aquele!

Certos bípedes ainda se aproveitaram do medo e da bagunça geral e inventaram culpas, desculpas e jogadas políticas, batendo boca como idiotas desorientados, repetindo a mania de se fazerem mais espertos e tirarem proveito sobre bípedes inimigos.

Soberana e serena, a velha Vida contempla o planeta azul e espera calmamente para ver no que vai dar o pandemônio. Ela; sim, pode: ao contrário dos bípedes eretos, ela é eterna e já passou por muita coisa.

 

                                                                              

 

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