Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

De prosa com minha mãe

'Acho que, se ela fosse um carimbo, carimbava o mundo todo com a palavra “amor, sua marca registrada'

Por Laura Medioli
Publicado em 31 de julho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Minha mãe me liga entusiasmada. Com seus 86 anos, quer escrever um livro dedicado aos bisnetos. Um livro que fale de sua infância à maturidade. Algo mais pontual, fatos que marcaram a sua vida e a de quem conviveu ao seu lado. Uma coisa é certa: minha mãe marcou a vida de muita gente. Acho que, se ela fosse um carimbo, carimbava o mundo todo com a palavra “amor”, sua marca registrada.

Amor pela família, por quem a acompanha no dia a dia, pelos acamados, pelos que lutam para sobreviver... Amor pelas crianças pobres, pelos que sofrem preconceitos, pelos animais, pelos amigos queridos, pelos moradores de rua aos quais ela aos sábados servia sopão, pelos congadeiros que a encantam, pelos passarinhos que alimenta de sua varanda, pelo malabarista do sinal... 

É daquelas que, no meio de uma pandemia, abre o vidro do carro e, juntando as moedas da carteira, puxa assunto com o jovem sem máscara:  

– Você é muito bom! Onde aprendeu a fazer isso? 

Antes que ele responda, com o sorriso mais largo do mundo, o sinal abre. Pelo retrovisor, vê-se a cara de felicidade do outro, com suas três bolinhas na mão. 

– Mãe, não faça mais isso! O menino estava sem máscara!!! 

– Tem problema não, filha, a vida está difícil pra todo mundo. Temos que incentivar, mesmo nas menores coisas. 

Minha mãe nunca deixa de elogiar as pessoas. Antes das críticas, procura sempre o lado bom. O problema é que, para ela, todo mundo é bom, chegando a ter uma ingenuidade quase infantil.  

Em tempos de internet e de WhatsApp (a que ela aderiu prontamente), diz estar preocupada com as próximas gerações. Sente que muitas coisas vêm se perdendo, a exemplo de atitudes e falas simples como um “bom dia” ou um “Deus te abençoe”, regrinhas básicas da boa educação, as gentilezas do dia a dia, a espiritualidade e a compaixão.  

– O mundo está muito doido! – costuma dizer. 

Quero saber do livro, que a incentivo a escrever desde já. Conteúdo tem de sobra, já que a vida de minha mãe sempre foi um livro aberto de bons exemplos e aprendizagens, que ela agora deseja repassar aos bisnetos. 

– Quero que eles aprendam a ter respeito pelas pessoas, principalmente as mais humildes. Que aprendam a ser gentis, elogiar, valorizar... Saber que, às vezes, um tempinho que você dispensa a alguém vale mais que qualquer presente comprado.  

E me conta do homem que, saltando a cerca de nossa antiga casa na Pampulha, ia duas vezes por semana buscar capim-gordura para seu burrinho. De vez em quando se encontravam, próximos à pedreira. E, como sempre, minha mãe, com seu jeitinho delicado, ia puxar assunto. 

 – Onde o senhor mora? 

Conversa vai, conversa vem, nas idas e vindas do homem, um dia minha mãe o perguntou: 

– Por acaso o senhor conhece alguma moça boa que queira ser a babá da minha filha? 

A filha era eu, com 2 anos de idade. Naquela época, quase nada existia na região – nem gente direito tinha na Vila Recreio que, com o passar dos anos, originou o completíssimo e bem povoado bairro Ouro Preto. 

O homem coçou a cabeça e respondeu: 

– Eu tenho uma filha moça, nunca a deixei trabalhar fora, mas, como eu devo muita obrigação à senhora, vou falar com ela.  

– Mas o senhor não me deve obrigação nenhuma! Por que diz isso? – questionou. 

E ele, na sua humildade, respondeu: 

– Porque a senhora conversa comigo, me trata bem... 

Ao lembrar dessa história minha mãe diz: 

– Filha, a babá foi a Cila, a melhor babá que já passou em nossa casa. Lembra-se dela? 

– Claro, mãe! Ela saiu para se casar, e eu, já mocinha, fui a sua dama de honra! 

Penso que são essas pequenas lições que ela quer deixar registrado no seu livro. A número 1: a importância de se tratarem bem as pessoas, independentemente de quem seja. 

Ao fazer 80 anos, ela quis comemorar de forma diferente: faria uma grande festa a todas as pessoas que já passaram por nossa casa nos últimos 60 anos: cozinheiras, arrumadeiras, jardineiros, motoristas...  

– Foram eles que me ajudaram a vida toda. Que estiveram comigo desde o início, quando eu, com quatro crianças pequenas, fui morar no fim de mundo que, na época, era a nossa casa da Pampulha. Foram meus ajudantes, conselheiros, amigos... E nunca me deixaram na mão. 

A festa foi linda! E, para animá-la, ainda convidou seus amigos congadeiros. Lembro-me de quando brincávamos: 

– Mãe, sua casa está virando um asilo! As pessoas aqui só entram e nunca saem! 

E era verdade. A cozinheira Maria do Carmo ficou por mais de 40 anos; o motorista Arthur, mais de 30; o jardineiro Pedro, idem; Vera, que entrou mocinha, saiu no ano retrasado, com mais de 70 anos, quando, finalmente, entendeu que já era a hora de se aposentar. Nossa casa era uma espécie de porto seguro, vivia cheia de gente e um batalhão de pessoas dispostas a ajudar. E era comum elas levarem os parentes para tomar café e bater prosa, para a alegria de minha mãe. 

E, dentre os casos que vamos relembrando, falamos da estranha coincidência que vem se repetindo nos últimos anos. Pessoas que por lá passaram, já idosas, algumas delas que já pensávamos estar mortas, de repente, aparecem na casa da mamãe dizendo estar com saudades. Pouco tempo depois, recebemos a notícia do seu falecimento. Visitá-la, pelo jeito, foi uma espécie de despedida para eles.  

– Realmente, essa história é intrigante... – comento. 

E ela, já se adiantando me diz:  

– Mas eu não vou escrever sobre isso no meu livro, não. 

– Por quê? – pergunto. 

– Porque aí ninguém mais vai querer me visitar, uai! – responde, rindo. 

 

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