Laura Medioli

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Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

Pelos caminhos do Nepal

Os nepaleses são gentis e sorridentes, e o nosso guia, um simpático budista, com o qual nos expressávamos em italiano, não fugia à regra

Por Laura Medioli
Publicado em 01 de dezembro de 2019 | 03:30
 
 
 
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Recentemente, minhas filhas estiveram na Índia pela segunda vez. A primeira foi comigo e com meu marido, que, na ocasião, fazia questão de frisar: “Nossas filhas, quando tiverem 15 anos, não vão pra Disney, vão pra Índia”. E assim foi. Uma das viagens mais enriquecedoras que poderíamos oferecer a elas.

Desta vez, foram com um grupo de jovens empresários, que queriam conhecer de perto a vida daquele país, sua diversidade, sua economia em plena ascensão, sua religiosidade, enfim, todo um conjunto que faz dela um lugar único.

Aproveitando a ida ao Oriente, ao contrário do grupo, que quis passar uns dias em Dubai, elas buscaram uma experiência oposta e foram conhecer o Nepal. Para elas, uma viagem inesquecível, assim como foi para mim muitos anos atrás.

Era o ano de 1999 quando lá estive com meu marido. Da janela do avião, ao ver os gelos eternos do Himalaia, tive a certeza de que iria me apaixonar. Para não me esquecer de nada, fiz um diário da viagem, que ainda guardo com carinho.

Ao descermos em Katmandu, encontramos uma cidade organizada, de ruas largas e com o trânsito fluindo, bem diferente do das cidades indianas. Os nepaleses são gentis e sorridentes, e o nosso guia, um simpático budista, com o qual nos expressávamos em italiano, não fugia à regra. No Nepal muitos budistas são de origem tibetana, e é em Katmandu que existe o maior templo budista do país.

No dia seguinte, fomos a um vilarejo aos pés do Himalaia. Para chegarmos lá, passamos por estradas estreitas, cheias de curvas e precipícios. Eu entrava em pânico com os ônibus, lotados de gente, inclusive no teto, subindo aos trancos e barrancos por aquelas estradas malucas.

Descobri que no Nepal se viaja muito de avião. Existiam aeronaves para até 20 passageiros e pequenos aeroportos espalhados em diversas localidades, já que o país não tinha condições para construir estradas. Às vezes ocorria de a pessoa nascer e morrer em um lugar sem nunca ter ido a outro porque não existiam ligações com o resto do mundo. O dia estava nublado, o que nos impediu de ver a magnitude das montanhas.

Na manhã seguinte, partimos para Pokhara. Sem templos ou monumentos significativos, era um local de paz com uma incrível beleza natural, conhecida como a “joia do Himalaia”. É famosa por atrair hippies que pareciam ter saído dos anos 60 e estacionado no tempo. Segundo o guia, a marijuana é nativa da terra, e os nepaleses usam-na somente para fins medicinais. Quando jovens estrangeiros descobriram que no país nasciam “pés de maconha” feito mato, rapidamente o local se transformou num point de usuários. Da Tailândia chegava heroína, e, quando o governo se deu conta, resolveu interferir. Sabia que esse tipo de turista não acrescentava nada, muito pelo contrário. Só que o lugar já tinha adquirido fama, e ainda hoje encontramos resquícios da época ao nos depararmos com antigos moradores, vendendo seus badulaques e levando a vida.

Voltamos para Katmandu. No trajeto, muitas plantações de trigo. Tanto na Índia quanto no Nepal a impressão que se tem é que são as mulheres que pegam no pesado. Vi muitas subindo morro com fardos enormes nas costas, quebrando pedras manualmente para fazer brita, dando duro na construção civil. Nota 1.000 para elas, que, além de cuidarem dos filhos e dos maridos folgados, conseguem ser tão dóceis.

Nosso guia contou histórias curiosas. Mostrou-nos senhoras idosas usando determinado tipo de brinco. Disse que o acessório é colocado em suas orelhas durante uma cerimônia, no exato momento em que se completam 77 anos, 77 dias e 7 horas após seu nascimento. O número 7, assim como em tantas outras religiões, é místico. Mostrou-nos homens de vestes brancas e cabelos raspados, o que quer dizer que são órfãos de pai e mãe (vestem-se assim durante um ano). Quando uma mulher se veste de branco, é sinal de que é viúva.

Em Katmandu, fomos a um dos locais mais sagrados da cidade: um templo hinduísta datado de mais de 2.000 anos, às margens de um rio. Lá vimos de tudo: corpos sendo cremados, doentes à espera da morte, centenas de macacos enchendo o cenário e sadhus (conhecidos como homens santos) em meditação.

No templo existe um lugar destinado àqueles que estão à beira da morte e desejam desencarnar-se em local sagrado. Ao morrerem, seus corpos são enrolados em tecidos coloridos e, após serem cremados, têm suas cinzas jogadas no rio. Durante a cremação não é permitido o choro. É como se o ato de chorar “segurasse” a alma da pessoa, impedindo-a de partir para outro nível.

Por isso, quando as mulheres começam a chorar (normalmente são elas que choram), se retiram do local. Quando uma mãe morre, o filho mais novo é quem deve acender a pira, e, quando é o pai, o filho mais velho. O tempo necessário para que o corpo se transforme em cinzas é de mais ou menos três horas.

Após sairmos do templo hinduísta, fomos ao maior templo budista do país. Diz-se que Buda tudo vê, tudo sabe, mas nunca fala. As imagens não têm boca, somente olhos. É situado num bairro tibetano, onde vimos monges com suas roupas laranja e cabeças raspadas. São ordeiros e completamente da paz.

Muitos anos se passaram após essa viagem. Procuro as fotos que tirei da cidade, dos templos, dos monumentos, de sua gente simples e cordial. Olho com ternura o retrato do nosso guia. E penso nele de maneira positiva, esperando que aquele sorriso registrado na imagem não tenha se apagado.

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