PAULO HADDAD

A poupança é uma virtude?

Quando o ambiente está impregnado de incertezas, quem tem liquidez financeira tem mais segurança, mas contribui também para a formação de círculo vicioso de menor demanda


Publicado em 14 de janeiro de 2021 | 03:00
 
 
 
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Em 2020, a caderneta de poupança apresentou um recorde de R$ 166,31 bilhões, valor que mede a diferença entre depósitos e retiradas. O resultado é o maior já registrado desde o início da série histórica, em 1995. As aplicações começaram no vermelho em janeiro e fevereiro e tiveram apresentaram um expressivo sinal positivo a partir de março, com o início da pandemia da Covid-19, quando os depósitos passaram a superar os saques. O recorde anterior havia sido em 2013, no valor de R$ 71,05 bilhões.

Devemos comemorar esse recorde como uma virtude no comportamento responsável dos brasileiros, em pleno ano de crise econômica? A resposta depende, na verdade, do contexto histórico do ciclo econômico que um país atravessa, pois podemos cair na armadilha do sofisma ou falácia de composição.

O sofisma ou falácia da composição é a falsa crença de que o que é verdade para a parte deve ser verdade para o todo. Alguns exemplos clássicos: se um torcedor do América levantar-se na arquibancada da Arena Independência, ele verá o jogo melhor do que os outros torcedores, mas se todos os torcedores fizerem o mesmo, ninguém verá o jogo melhor do que antes; na disputa por uma vaga de emprego, um trabalhador pode concordar em receber um salário menor, mas se todos os trabalhadores decidirem fazer o mesmo, não conseguirão ser empregados, pois o menor salário para todos pode representar menores rendas (massa salarial) para a maioria da população, menor demanda de bens e serviços e, igualmente, menor demanda de mão de obra, apesar dos níveis mais baixos de salários.

Entretanto, a falácia da composição mais famosa foi proposta por John Maynard Keynes, em 1936, e ficou conhecida como “o paradoxo da parcimônia”: se uma pessoa poupa, ela pode investir ou financiar um projeto de investimento via mercado financeiro, mas se todo mundo poupa ao mesmo tempo, não haverá demanda de consumo suficiente para estimular o investimento. Demanda reduzida de consumo reduz, portanto, a demanda de investimento, que também realimenta a diminuição da demanda agregada.

Numa economia em recessão, como tem ocorrido no Brasil, desde 2014, forma-se uma imensa capacidade ociosa de máquinas, trabalhadores e infraestrutura. O PIB potencial que pode ser realizado é bem superior ao PIB efetivo. Há uma insuficiência generalizada de demanda agregada. Assim, pode-se observar que o auxílio emergencial no ciclo da pandemia contribuiu decisivamente para ativar a demanda de consumo. Previa-se que a taxa de crescimento do PIB de 2020 seria negativa em 10%, mas deverá ser inferior a 5%, graças aos impactos positivos da distribuição de renda para as famílias mais pobres.

Por outro lado, as famílias nos três níveis da classe média, devido às incertezas tenebrosas da economia em tempos de pandemia, retraíram o seu consumo e provocaram um aumento nas aplicações em caderneta de poupança causado pelo efeito-precaução. Quando o ambiente está impregnado de incertezas, quem tem liquidez financeira tem mais segurança, mas contribui também para a formação de círculo vicioso de menor demanda, maior desemprego, menor renda e menor demanda. Enfim, numa conjuntura de recessão econômica, a poupança pode vir a ser uma virtude privada, mas, com grande probabilidade, será um potencial de desastres para o conjunto da economia.

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