Representatividade

A Covid não faz distinção de raça, mas a sociedade faz

Ao mesmo tempo em que morre mais, a população negra também é a que vive em piores condições


Publicado em 02 de abril de 2021 | 03:00
 
 
 
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Na última coluna que fiz, sobre falta de bonecas negras no mercado brasileiro, entre os comentários, um me chamou mais a atenção. O leitor questionava o motivo de eu estar preocupada com brincadeiras infantis em meio a uma pandemia. Eu não sei se a intenção dele foi a de reduzir o tema tratado naquele momento, como ocorre com frequência, ou de fato me alertar. Mas uma coisa é fato: ele me deu uma ótima pauta. Sim, a Covid-19 tem sido devastadora, e eu preciso dizer que, mais uma vez, a população negra é uma das principais vítimas. 

Antes que alguém me pergunte: não, o vírus não tem preconceito. Mas, quando ocorre um problema de saúde pública de tão grandes proporções, quem mais sofre é a população em maior vulnerabilidade social. E, sim, a população negra está nessa estatística. Um estudo divulgado recentemente pela Afro-Cebrap, um centro de pesquisa em questões raciais, em parceria com a organização global de saúde Vital Strategies, conseguiu quantificar isso. 

 

Eles levantaram um indicador sobre o que chamaram de “excesso de mortalidade por raça/cor” para avaliar os efeitos diretos e indiretos da pandemia. Além dos óbitos por Covid-19, entraram nesse cálculo as mortes provocadas indiretamente pela pandemia, como, por exemplo, as resultantes da sobrecarga nos serviços de saúde e da interrupção de tratamento de doenças crônicas. No fim das contas, o Brasil fechou 2020 com um excesso de mortalidade de 270 mil pessoas. 

Porém, segundo a pesquisa, entre os homens negros, a mortalidade foi 55% maior comparada com a dos homens brancos. E esse indicador que chamam de excesso de mortalidade foi 57% maior entre as mulheres negras ante as brancas. O próprio estudo tenta traçar uma explicação para isso ao dizer que pessoas negras têm menor acesso ao sistema de saúde, por estarem, em sua maioria, em condições econômicas piores do que as brancas. 

Ao mesmo tempo em que morre mais, a população negra também é a que vive em piores condições. Levantamento feito pelo Dieese no final do ano passado mostrou que a desigualdade entre brancos e negros se agravou durante a pandemia. Dos 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, 6,3 milhões eram negros e negras. Ou seja, 71% do total. 

E aqui, neste ponto, muitos podem estar se perguntando o motivo dessa diferença. Os números que eu trouxe nesta coluna são diferentes dos já comentados em outras edições, mas têm como causa algo que já falamos muito por aqui: resquícios da escravidão. Imaginem que poucas gerações atrás a população negra era escravizada e sem direitos. De repente, essas pessoas foram libertas sem dinheiro, sem acesso à educação, sem moradia. O caminho seguido foi construir lares em áreas periféricas, dando origem às favelas e às áreas sem acesso a direitos básicos, como saneamento. Boa parte dessa população ainda está à margem, e neste momento em que precisamos nos isolar em nossas casas muitos estão por aí fazendo trabalhos braçais para sobreviver e morando em áreas onde os banheiros são coletivos. 

A mesma população negra que está mais exposta ao vírus é a que tem menos acesso à saúde. Pesquisas apontam que a população branca tem duas vezes mais acesso a planos de saúde, por exemplo, do que a negra. O resultado disso é claro: uma morte em massa. Por isso eu volto a dizer: a pandemia tem sido devastadora para todos, mas tem destruído mais famílias negras do que brancas.

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