A condenação do ex-policial Derek Chauvin pela morte de George Floyd nos Estados Unidos foi comemorada como uma vitória do movimento antirracista, que ganhou força após o episódio. No Brasil, vimos brancos e negros dizendo que “vidas negras importam”, principalmente nas redes sociais. Mas, se puxarmos na nossa memória recente, em casos parecidos aqui no país, muitas dessas pessoas que dizem levantar essa bandeira passam a defender o agressor. E aí eu pergunto: é ético escolher qual preto merece morrer com base em um olhar contaminado por uma sociedade racista?
Era mesmo para ser um consenso de que o assassinato de Floyd nas circunstâncias em que ocorreu é um absurdo tremendo. Um policial ficar nove minutos asfixiando uma pessoa algemada, mesmo com os apelos de “estou ficando sem ar”, é uma violência brutal e, no mínimo, desnecessária. Choca. E, graças às imagens que circularam no mundo inteiro, o ato foi corretamente julgado.
Mas, infelizmente, nem sempre é assim. Aliás, muitas vezes não é. Primeiro porque nem sempre temos câmeras filmando as agressões que ocorrem diariamente contra a comunidade negra no mundo inteiro. No Brasil, muitos jovens pretos são colocados na mira de fuzis e vistos como suspeitos. A justificativa padrão para abordagens policiais é “indivíduo em atitude suspeita”. Em um país com raízes racistas e escravocratas, ser negro e estar de boné, chinelo ou na periferia já te coloca nessa atitude suspeita, infelizmente. Situação que se repete nas ruas, em lojas, em boates, em qualquer lugar.
Não precisamos ir muito longe no tempo para ilustrar isso. Em novembro do ano passado, João Alberto foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre. Outro homem negro que teve o direito de defesa negado e recebeu a pena de morte, mesmo não sendo permitida por lei no país.
O esperado era um grito por justiça vindo daqueles que pediram o mesmo por Floyd. Porém, muitos deles preferiram usar os argumentos-padrão: “santo ele não era” ou “deve ter feito alguma coisa”. Não estou entrando no mérito da ficha criminal de nenhuma das vítimas. Fato é que todas as pessoas têm direito à defesa, e, em caso de erro, a pena máxima prevista no Brasil é a prisão.
A “passação de pano” a favor de preconceituosos entrou em ação também no caso do pequeno João Miguel, menino negro de 5 anos que morreu após acompanhar a mãe dele no trabalho. Quando ela teve que sair para passear com o cachorro da patroa, a mulher simplesmente deixou a criança entrar no elevador, chegou a apertar os botões para ela e a deixou solta. Resultado: João escalou algumas grades e morreu ao cair do nono andar. Mais uma vida negra ceifada. Nesse caso, também tiveram aquelas pessoas que defenderam a patroa. E, aqui, eu pergunto: vidas negras importam mesmo?
O que eu sei é que há uma resistência muito grande no país de atrelar certos crimes e atitudes ao racismo, inclusive no Judiciário. Levantamento do Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que em 70% das ações por crime de racismo ou injúria racial no país quem ganha é o réu.
Existem várias possíveis explicações para esse resultado. Uma delas é o tão negado racismo estrutural na nossa sociedade, que acaba colocando um filtro racial até mesmo nos julgamentos. Sendo mais clara, pessoas que cresceram tendo uma visão de que negros são inferiores têm dificuldade de ter uma visão isenta. Outra justificativa é a dificuldade de uma pessoa que não sofre racismo de se colocar no lugar do outro. E estamos em um país onde 80,34% dos juízes são brancos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ter empatia é difícil, mas fato é que só vamos reduzir a violência contra negros no país quando os culpados forem punidos adequadamente e a bandeira do Vidas Negras Importam for erguida de corpo e alma, e não apenas por moda.