Soul

Alma black da cidade 

Eventos que põem o soul em evidência na cidade chamam atenção para a importância dessa cultura de resistência e de seu legado para nova geração de artistas

Por Jessica Almeida
Publicado em 27 de agosto de 2016 | 03:00
 
 
 
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Grupo Berimbrown é herdeiro do movimento soul em Belo Horizonte e seu último disco, ‘Lamparina’, traz o ritmo misturado a vissungos, música quilombola e de candombe

Foi pelas ondas do rádio que o soul entrou em Belo Horizonte. Nos anos 1970, Geraldo Ferreira de Souza, o Geraldão, então diretor artístico da Cultura AM, começou a colocar na programação da emissora músicas de grandes nomes do gênero, como Marvin Gaye, Aretha Franklin e, claro, James Brown. Além de veicular as canções, Geraldão traduzia as letras para o público, criando imediata identificação com a temática do orgulho negro e resistência.

Não demorou muito para uma série de clubes da cidade darem início aos chamados “bailes blacks” – um dos mais importantes, o Máscara Negra, acontecia na rua Curitiba, no centro – atraindo dançarinos de todas as partes da capital com seus ternos engomados, sapatos lustrosos, cabelos “black power” e muito gingado. “Isso vai até o fim da década, quando a ‘disco music’ emerge, abalando a hegemonia do movimento black”, explica a professora da Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais Rita Ribeiro, que pesquisa culturas urbanas.

A partir daquele momento, a cultura do soul perdeu força na cidade, se resumindo a alguns focos de manifestação. Isso até cerca de 15 anos atrás, quando começou a ser notada outra vez de forma mais evidente, num movimento que culminou na transformação de Belo Horizonte em uma das principais referências dessa vertente cultural no Brasil. Sinal disso é que no intervalo de uma semana, entre este sábado (27) e o próximo (3), três eventos que têm o soul como espinha dorsal acontecem na cidade: os já tradicionais Baile da Saudade e Quarteirão do Soul, neste fim de semana, e o estreante Movimento Soul – Mostra BH, no próximo (leia mais na página 4). Além do lançamento do DVD documentário “BH Soul – A Cultura Black de Belo Horizonte” (2010), dirigido por Tomas Amaral, que aconteceria na última sexta (26).

“Aqui, o soul foi uma moda com caráter de contracultura, que os excluídos do processo social desenvolveram nas ruas e nas periferias”, afirma Amaral. “Quando a moda passou, houve uma resistência mantida por poucas pessoas. Uma delas é o Toninho Black, que faz o Baile da Saudade há mais de 30 anos. A partir daí, o resgate aconteceu e novos grupos foram organizados. Surgiu o Quarteirão do Soul e depois vieram outros movimentos. Hoje, Belo Horizonte é um dos polos dessa cultura no país. Foi de um intercâmbio com as pessoas daqui, por exemplo, que o mesmo processo começou a ser estimulado no Rio de Janeiro. Também há um grupo de São Paulo que vem aqui de vez em quando. Nos últimos anos, a cidade conseguiu de fato retomar essa cultura black dos anos 1970 de forma intensa”, completa o cineasta.

A força do soul em BH, tanto no passado, quanto no presente, é um instrumento importantíssimo na afirmação da identidade do povo negro daqui, como explica a professora Rita Ribeiro. “Quem é o grande ídolo do movimento? James Brown. E ele levanta a bandeira do orgulho negro de uma forma excepcional. Suas letras e postura revelavam grande amor e orgulho pela sua própria identidade. E as pessoas se espelham nisso e demonstram isso tanto no visual quanto na atitude”, explica.

Herança
Outro legado importante é o fomento da arte negra na cidade, sendo inspiração direta de gerações mais jovens de artistas, como demonstra o rapper Roger Deff, 37, uma das atrações do Movimento Soul – Mostra BH. “Eu comecei no rap na década de 1990, integrando a banda Julgamento que faz 20 anos este ano. Para essa geração do hip hop, o soul, o funk, a música negra de uma forma geral é uma influência muito presente, indissociável. Na minha vivência pessoal também. Um primo meu tinha uma banda, a Black Soul, e me presenteou com vários discos do James Brown. Depois tive contato com os dançarinos de soul”, lembra. “Frequentei pouco movimentos como o Baile da Saudade e o Quarteirão do Soul, mas foi neles que pude sentir de fato aquela coisa dos anos 1970, dos bailes que aconteciam aqui”.

Ele lembra que num encontro com Tony Tornado, um dos maiores nomes dessa cena no Brasil, o intérprete de “BR-3” reafirmou a força do soul por aqui. “Tornado disse que ficava impressionado com o tamanho desse movimento em BH”, conta. “Isso é muito importante para nós, ainda mais num país em que o negro sofre com a síndrome de vampiro, ou seja, não consegue se enxergar na mídia, na TV. Num país que nega essa visibilidade pra gente, a música negra, o espírito da soul music, o hip hop são as ferramentas que temos para fortalecer nossa identidade”.

O Berimbrown, que mistura vários elementos de matriz africana, inclusive o soul, também foi diretamente influenciado por esse movimento. “Meu irmão mais velho frequentava o clube Máscara Negra. Nós ouvíamos James Brown em casa. Depois comecei a frequentar as festas em casas e até bailes porque na periferia essa cultura nunca acabou, só que era mantida por pessoas que estavam às margens da sociedade”, afirma Mestre Negoativo, 50, fundador do grupo.

Para a DJ Black Josie, outra atração do Movimento Soul, a existência do Quarteirão do Soul e outras iniciativas no centro da cidade foram fundamentais para sua profissionalização. “Eu já tinha interesse como DJ amadora, mas o encontro com a galera da rua foi um grande incentivo”, diz ela, que acredita que esses grupos são um patrimônio cultural da cidade. “Além de tudo as pessoas vão elegantes, bem vestidas, usam sapatos caríssimos que precisam ralar pra comprar. Existe todo um cuidado artístico que, além de ser importantíssimo pra autoestima, é muito bonito. É uma cultura tão rica quanto o congado, só que urbana”, conclui.

 

Resistência e perseverança

Com cerca de 16 anos, Antônio Marçal, mais conhecido como Toninho Black, 58, começou a frequentar os bailes de Belo Horizonte onde tocava soul. “Conheci algumas músicas do James Brown, do Gerson King Combo e comecei a gostar do tipo de balanço. É um balanço forte. A soul music é um som que agita qualquer sangue na veia”, afirma Toninho, que viveu com intensidade os anos em que o soul esteve em alta, nos anos 1970.
 
Ao fim da década, no entanto, a discoteca chega com tudo, impulsionada pelo filme “Os Embalos de Sábado à Noite” (1977) e pela novela global “Dancing Days” (1978). Com isso, o soul perde espaço na cidade. “Aos poucos, os DJs foram largando de lado, os clubes foram fechando, porque o que dava dinheiro era tocar disco music. E nós ficamos sem ter onde frequentar”, lembra Toninho. “Então, eu comprei um sonzinho, aluguei uma loja, que tinha até o apelido de Forninho, convidei uns amigos e voltei a tocar soul aos sábados. O movimento era bem irregular. Então, resolvi fazer uma vez por mês e juntar o pessoal todo num dia só. Fundei o Baile da Saudade em 1983, para resgatar e manter a soul music na alma dos blacks”, lembra.
 
De 1983 a 1998 o baile acontecia no bar e danceteria Zeppelin, em Venda Nova, religiosamente um sábado por mês. “Viessem dez pessoas ou cem, nós tocávamos até as 5h da manhã”, garante Toninho. De lá se mudou para a boate Flash Dance, também em Venda Nova, onde permaneceu da mesma forma até 2013. Durante esse período, outras três iniciativas ajudaram o Baile da Saudade a retomar a cultura do soul em BH. Uma delas foi a do fundador da Rádio Favela FM, Misael Avelino, que recolocou o soul nas ondas do rádio. “Além de fazer uma revolução, como a que fizeram os Racionais MCs, divulgando a visão da favela, Misael sempre deu espaço grande para o soul na programação”, comenta Tomás Amaral, diretor do filme “BH Soul – A Cultura Black de Belo Horizonte” (2010).
 
No ano de 2000, Berimbrown lançou seu primeiro disco, autointitulado, e convidou o ícone do soul brasileiro Gerson King Combo não só para uma participação, como para o show de lançamento. “Cantamos no extinto Lapa Multishow, no bairro de Santa Efigênia, com a comunidade soul de BH toda presente. Foi ali que conseguimos retribuir um pouco de tudo o que aprendemos com eles, numa das primeiras aparições do soul fora da periferia”, lembra Mestre Negoativo, fundador do grupo. “Nós também levamos o Gerson na Rádio Favela para conhecer o Misael, que é grande fã e ficou muito emocionado”.
 
Retorno
E em 2004, a retomada do gênero foi sacramentada com o surgimento do Quarteirão do Soul, no centro da cidade. Discotecário nos anos 1970, Geraldo Santos, 58, mais conhecido como Geraldinho, lavava carros na rua Goitacazes ao som de James Brown, quando começou a arriscar uns passos junto com amigos, ali na rua mesmo. “Uma senhora passou e disse ‘continue com essa ideia que ela é muito boa!’. Foi aí que resolvi levar pra frente, junto com o DJ Abelha e outros amigos”, lembra Geraldinho. “No início, a gente colocava o som no carro mesmo, uma Caravan, mas a bateria sempre arriava e tínhamos que empurrá-la pra começar de novo. Depois chamei também o DJ A Coisa, que cedeu seu equipamento, que nós passamos a ligar num bar da rua”.
 
Aos poucos, o movimento se consolidou e começou a chamar atenção de quem não era da cena black. “O Quarteirão traz o movimento de volta para o centro e faz com que ele recupere o sentido de apropriação da cidade. Aquelas pessoas que tinham sido empurradas para a periferia retornaram para o centro”, afirma a professora da Universidade Estadual de Minas Gerais Rita Ribeiro, pesquisadora de culturas urbanas. Em 2014, o Baile da Saudade também foi para o centro, ajudando a reforçar o processo. Atualmente, o baile acontece no Núcleo de Estudos da Cultura Popular (Necup), no Prado, na região Oeste da capital.
 
Com o retorno para o centro e o advento das redes sociais, que ajudam a espalhar a ideia, o movimento retoma sua força e se multiplica, como observa Tomás Amaral. “O desafio agora é encontrar uma maneira de não deixar que essa resistência seja esvaziada ou transformada em mero produto mercadológico. O soul se manteve firme sem apoio da mídia e do poder público e agora isso começa a dar frutos. O próximo passo é buscar preservar esses frutos sendo coerente com a sua história”, diz.
 
Quarteirão do Soul luta para voltar a rua do centro
Embora tenha seu valor reconhecido em várias esferas, o Quarteirão do Soul hoje enfrenta problemas para continuar. Nascido na rua Goitacazes, acabou se transferindo para a rua Santa Catarina, após reclamações de vizinhos e comerciantes por conta do barulho. No entanto, depois de mais de dez anos na região, a autorização para ser realizado no local foi retirada. “Depois das obras do Move, a prefeitura suspendeu nossa liberação para fazer os encontros ali. Isso é prejudicial porque as pessoas já conhecem aquele ponto como nosso, por mais que façamos em outra região do centro, como o Viaduto Santa Tereza, onde já tentamos, o pessoal pode não nos achar”, lamenta Geraldinho, fundador remanescente do movimento.
 
Por conta disso, o encontro foi suspenso aos sábados e tem acontecido somente uma vez a cada dois meses, aos domingos, na praça Sete. Dessa forma, o soul como um todo perde sua potência em BH. Mas Geraldinho diz que não vai desistir. “Enquanto eu puder e aguentar, trago a caixa de som e vou continuar tocando. Minha satisfação é fazer um trabalho social, porque acho que a sociedade devia proporcionar lazer pra todo mundo. Nós não estamos pedindo dinheiro, só o espaço pra fazer o evento. Minha satisfação só vai ser plena quando conseguir voltar a tocar aos sábados”, diz.
 
Para a professora da Uemg e pesquisadora de culturas urbanas Rita Ribeiro, o poder público falha na medida em que cerceia a iniciativa. “É uma forma de empurrar a periferia de novo pra fora. É um movimento popular e eles querem que seja sistematizado, mas isso é um absurdo. São os governantes que devem proporcionar condições para o evento acontecer, e não eles se conformarem às limitações impostas”, afirma.
 
Soul em BH
 
Baile da Saudade – Edição Olimpíadas
Atualmente com sede no Necup (av. Nossa Senhora de Fátima, 3.312, Prado), onde acontece no segundo sábado de cada mês, o baile tem edição especial neste sábado (27), na Casa do Jornalista (av. Álvares Cabral, 400, centro). A partir das 22h. R$ 15.
 
Quarteirão do Soul 
Impedido de ser realizado pela prefeitura na rua Santa Catarina, o tradicional encontro por ora está suspenso aos sábados. Porém, tem sido realizado aos domingos, uma vez por mês, na praça Sete. Neste domingo (28), a partir das 14h.
 
Movimento Soul – Mostra BH
Um dia inteiro de programação traz o soul e o funk dos anos 1970 e reúne nomes como Mandruvá, Cromossomo Africano e Roger Deff, Verso Venenoso e DJs como DJ Joseph e DJ Black Josie.
No próximo sábado (3), das 12h30 às 23h, no parque municipal (av. Afonso Pena, 1.377, centro). Entrada gratuita até as 18h e, após esse horário, mediante a doação de 1 kg de alimento não perecível. A troca por ingressos será no posto da Belotur, até sexta (2), de quarta a sexta, das 14h às 18h; e no sábado (3), das 9h às 14h.
 
 

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