Cássia Eller (1962- 2001) era tão, mas tão tímida que preferia ficar no seu cantinho a falar com pessoas desconhecidas. Dizem que o motivo de tamanho embaraço tem origem nas críticas e gozações que sofria no Rio de Janeiro por causa de seu acentuado sotaque mineiro, ainda na pré-adolescência. Esse relato de bastidor é apenas um dos que permearam e ajudaram a construir a imagem da artista apresentada pelo documentário “Cássia Eller”, que estreia em Belo Horizonte na próxima semana .
Dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, do já clássico “Loki – Arnaldo Baptista” (2008) e do “Dossiê Jango” (2013), o documentário conta a história daquela que era um furacão nos palcos, capaz de arrastar plateias do país inteiro e emocionar diferentes gerações com sua música. No entanto, não é exatamente nesta Cássia, rockstar cheia de atitude em que se encontra a riqueza do lançamento, mas em suas facetas mais profundas.
“A primeira exigência que a (Maria) Eugênia (ex-parceira da cantora) fez foi que a Cássia devia ser retratada como ela era, sem endeusá-la ou sem recorrer a sensacionalismos. Ela queria que eu falasse dos seus casos amorosos, de sexo, drogas e rock’n’roll, mas também da Cássia família, da Cássia divertida, da Cássia em sua intimidade”, conta o diretor, que teve o aval da companheira da artista e do seu filho Chicão para a realização do filme.
A partir daí, iniciou-se uma busca por arquivos, imagens e causos relacionados a Cássia que durou quatro anos e rendeu uma série de depoimentos emocionantes e curiosos, como o que abre este texto, revelado por sua irmã em conversa com o diretor, que não entrou no documentário. Em função das constantes mudanças impostas por sua condição de filha de militar, a roqueira morou em Belo Horizonte dos 6 aos 10 anos de idade e, segundo seus familiares, além de firmar uma de suas maiores paixões declaradas – o time do Galo – o tempo que passou aqui foi importantíssimo no desenvolvimento e consolidação de quem ela se tornou mais tarde. A timidez tem um quê de mineiridade.
“Quando comecei a pesquisar, vi que não tinha nada mais aprofundado sobre ela, então a gente resolveu recorrer a todo mundo que participou de alguma forma em sua vida, fossem parceiros musicais, jornalistas, familiares, amigos de infância... A cada entrevista, descobríamos uma nova Cássia, complexa e incrível”, comenta Fontenelle.
Ele angariou para o filme mais de 40 entrevistas, porém, como tudo precisava caber em mais ou menos duas horas, o depoimento de muita gente célebre, como Milton Nascimento, Frejat e Luiz Melodia, precisou ser cortado. O material com cenas excluídas deve ser oferecido em DVD.
Intimista
Dos depoimentos que ficaram – e que não são pouca coisa, como o de Zélia Duncan, Nando Reis, Oswaldo Montenegro e outros nomes de peso –, um dos que mais tocaram o diretor apresenta uma Cássia bem diferente daquela que empolgou a Cidade do Rock inteira, na terceira edição do Rock in Rio, com sua malandragem.
“Quando ela estava estourando e ‘O Segundo Sol’ tocando nas rádios, por vezes ficava de saco cheio de toda aquela pressão. Então, ela fugia do empresário, pegava uns três caras da banda e ia tocar em churrascaria. Imagina? Cássia Eller tocar em clubinho com ingresso a R$ 5. Ela ia pro interior, arrumava show e, de repente, estava lá a Cássia tocando violão. Ela não tinha essa vaidade de aparecer, só queria tocar suas músicas e se divertir”, revela.
Autodeclarado um músico frustrado, o documentarista teve como estopim para a realização do filme a música “Relicário” do disco “Acústico MTV” (2001), que há uns anos se pegou ouvindo. “A história de nossas vidas se confunde com suas músicas e esta, especificamente, me fez lembrar de um período muito bom da minha juventude e de pessoas muito queridas ligadas a ele”. Mas, para além da homenagem, o diretor também tinha uma vontade de reparação da cobertura midiática da morte da cantora, em dezembro 2001.
“O que se falou na época da morte dela foi uma injustiça. A mídia sensacionalista já foi falando que era overdose muito antes de saber o laudo médico. Já falavam que era uma mulher drogada, sem pensar que por trás daquilo tudo tinha um ser humano e uma família. Depois foi confirmado que se tratava, na verdade, de um infarto”, comenta Fontenelle, lembrando que até hoje pessoas associam a imagem de Cássia ao mundo das drogas sem muito entendimento.
“O documentário é uma forma de se conhecer aquilo de que não se tinha notícia. Ver as coisas a partir de outro ângulo”, diz.