A psicóloga Alcione Kolanscki ficou surpresa quando, durante uma das edições belo-horizontinas da Feira Grátis da Gratidão, a qual ela ajuda a organizar, um homem se aproximou seção de brinquedos – que, a princípio, deveria atrair crianças –, pegou uma bonequinha e foi embora, segundo ela, feliz da vida. Dias depois, pelo grupo de Facebook da feira, ela descobriu que o moço reformou a boneca, fez uma nova roupinha e deu de presente para a mãe.
O evento em questão é uma versão da “gratiferia”, proposta idealizada pelo argentino Ariel Rodríguez Bosio em 2011, que de lá pra cá se espalhou e já foi realizada em países como Uruguai, Espanha e França, além de várias partes do Brasil. Seu lema é “traga o que quiser (ou nada) e leve o que quiser (ou nada)” e, dessa forma, acabam aparecendo o que as pessoas imaginam que possa fazer algum bem ao outro – de roupas a abraços, passando por brigadeiros e até massagens – tudo sem o envolvimento de dinheiro. A proposta, que já chegou a reunir cerca de 800 pessoas, é ajudar as pessoas a se livrarem do acúmulo excessivo de coisas e exercitar o desapego, seguindo a linha do chamado consumo colaborativo.
Eleita pela revista “Time” uma das dez ideias que vão mudar o mundo, a prática do consumo colaborativo, bastante difundida na Europa e nos EUA, vem ganhando corpo no Brasil e viabiliza a economia de dinheiro, espaço e tempo, além do surgimento de novas amizades por meio de ações como compartilhamento, escambo, empréstimo, negociação, locação, doação e troca. Segundo Rachel Botsman e Roo Rogers, autores do livro “O Que É Meu É Seu: Como o Consumo Colaborativo Vai Mudar o Nosso Mundo” (Bookman, 2011), em trecho do livro, “estes sistemas fornecem benefícios ambientais significativos ao aumentar a eficiência do uso, ao reduzir o desperdício, ao incentivar o desenvolvimento de produtos melhores e ao absorver o excedente criado pelo excesso de produção e de consumo”.
Inspirada pela movimentação de troca de figurinhas que já é tradicional na praça República do Líbano, no bairro São Bento, a especialista em educação ambiental e comunicação Maristela Rodrigues também idealizou uma feira que se enquadra na proposta. Chamada de “Projeto Seumeunosso”, propõe trocas de livros de literatura, que acontecem no primeiro e terceiro domingo de cada mês na praça JK, no Sion. “Eu fui procurando apoio de pessoas da vizinhança para viabilizar uma ideia que é muito simples: com uma tenda, mesas e cadeiras, as pessoas vêm, trazem o material que já não usam, levam outros e criam laços umas com as outras”.
Catalisador
Naquele mesmo grupo do Facebook em que Alcione soube o desfecho de uma história que começou na Feira Grátis da Gratidão, o evento é articulado. “A organização é horizontal e nós fazemos enquetes para decidir local, data e horário. Já tivemos edições nas praças Duque de Caxias, Floriano Peixoto e da Liberdade”, diz. O potencial de criação de vínculos que a internet proporciona é algo fundamental para a difusão do consumo colaborativo.
As redes sociais e tecnologias em tempo real contribuem diretamente para a superação de hábitos de hiperconsumo e são o grande trunfo do que acontece agora, se comparado a iniciativas análogas em outros momentos da história, de acordo com a pesquisadora e professora universitária Uiara Gonçalves de Menezes. “Iniciativas como as vendas de garagem norte-americanas ou o próprio movimento hippie já continham essa ideia contrária ao consumo excessivo. Porém, a internet as traz para um ambiente mais dinâmico e é capaz de pulverizar essas práticas, espalhando-as em proporções maiores”.
De várias maneiras
Desde a adolescência, a jornalista Gabriela Garcia, 24, é frequentadora de brechós. Para ela, sempre foi mais atraente a ideia de poder encontrar peças singulares, diferentes e, ainda por cima, com preços mais em conta. Quando se casou, no ano passado, buscou a mobília de sua casa em “topa-tudos” e antiquários. “Me interessava poder comprar barato e reformar. Isso acabou se tornando passeio de sábado com meu marido: sair em busca das peças, depois comprar tinta e outros materiais para ‘brincar de casinha’ e deixar as coisas com a nossa cara. Tudo aprendido com tutoriais da internet e muitos erros antes de acertar”, conta.
Quando veio a gravidez de Cora, hoje com dois meses, e a necessidade de ir para um apartamento maior, começou tudo outra vez, só que agora com enxoval da filha no pacote: comprar coisas novas, só em último caso. Coincidência ou não, um amigo um pouco mais velho, a apresentou a um grupo de compartilhamento de roupas de bebê. “Eles estão naquela idade em que todo mundo começa a ter neném mais ou menos simultaneamente, e como são coisas que perdem o uso muito fácil, decidiram ir passando uns pros outros. Eu recebi uma sacola cheia e a única condição para isso foi que eu passasse pra outra pessoa depois”, explica.
Além disso, Gabriela faz parte de dois grupos virtuais de estímulo ao consumo colaborativo: o “Reciclistas”, de doações e o “Enjoei Desapega”, um tipo de brechó online. “Para mim, acabou virando uma espécie de prazer ir descobrindo coisas pra trocar e doar. A ideia é essa, não ficar com nada parado. Não é uma forma de ganhar dinheiro, porque ninguém cobra demais. E cria uma certa confiança, já peguei indicações de diarista, maquiadora, tudo nesses grupos. E participei de encontros presenciais também. A gente cria laços”.
A troca vai além do material
Situado no coração de Belo Horizonte, o Guajajaras era, até poucos meses atrás, só mais um entre os vários escritórios de advocacia do centro da cidade. Com espaço de sobra, foi repaginado e reformulou sua proposta. “Eu e meu amigo Lucas, que é arquiteto e da família a quem o imóvel pertence, tentamos encontrar uma forma de aproveitar melhor aquele lugar, que fica em um super ponto da cidade, mas estava desperdiçado”, explica o publicitário Daniel Amarilho, membro do que acabou se tornando, mais do que um ambiente de coworking, uma comunidade criativa. “Nós queríamos ir além do simples aluguel de mesas e cadeiras e proporcionar o convívio, a troca de experiências”.