Transitoriedade. Impermanência. Simplicidade. Muitos desses preceitos ainda provocam estranheza. Prova é que, ao abrir recentemente as portas de seu apartamento para a revista “Casa Vogue”, a atriz Bruna Linzmeyer recebeu comentários pra lá de depreciativos. É que muitos internautas não concordaram com as escolhas da catarinense, como as de manter livros empilhados pelo chão, flores ressecadas em vasos, uma poltrona com rasgos (pelos quais a espuma evadia)... Outro recurso que dividiu opiniões foi o de deixar uma das paredes sem nova pintura após a retirada dos quadros da moradora anterior – Bruna achou interessante o efeito do desbotamento provocado pela incidência do sol, em contraponto à área escura preservada pelas telas.
Uma das que se assustaram com o tom de certos comentários (embora tenha havido também os que endossassem as escolhas da moça) foi a designer de interiores Maria Fernanda Seixas, do Estúdio Ferdi. “Nada ali me incomodou. Ainda que não sejam escolhas que eu faria para minha casa. Afinal, quando vamos parar de pautar o que pensamos a respeito dos outros baseados unicamente em quem somos?”, argumentou ela, em texto no site “Metrópoles”.
Procurada pelo Pampulha, Maria Fernanda credita parte do estranhamento ao fato de muitas pessoas manterem viva a preocupação do que vão pensar da casa delas, “de como vão julgá-la por ter um objeto, velho, ou gasto”. “E acabam fazendo uma decoração mais voltada a impressionar do que para curtir, representar, se sentir acolhido”. No entanto, ela entende que essa chave está virando. Para a designer, é cada vez maior o número de pessoas que “entendem que são esses objetos com história que dão o tom, a identidade, o aconchego”.
A sensação de pertencimento deve ser o item principal da decoração, advoga ela. “A casa é cada vez mais o refúgio e essa mudança de visão alcançou a decoração”, enfatiza.
Wabi-sabi
Maria Fernanda relacionou as escolhas de Bruna Linzmeyer ao wabi-sabi, “conceito que busca valorizar a imperfeição das coisas e entender que são essas ‘falhas’ que trazem autenticidade, identidade e a consciência da impermanência da vida”.
É válido frisar que muitas dessas práticas se processam de forma intuitiva, espontânea e orgânica – e não de “caso pensado”, mesmo que acabem remetendo ao wabi-sabi. Na casa de Fábia Lima, professora do curso de Comunicação na UFMG, brinquedos danificados segue dividindo democraticamente espaço com os em perfeito estado na sua estante, enquanto o rasgo na cortina não tira seu sono. Recentemente, Fábia deixou cair um dos quadros do grafiteiro Binho Barreto. Mesmo avariado, ela simplesmente o pendurou de volta. “Sou muito tranquila. Se, na limpeza, a moça que me ajuda quebra alguma coisa, já vou logo falando: ‘relaxa’”.
A arquiteta Paty Fernandes partilha da mesma diretriz: “As marcas do tempo conferem ao objeto uma característica única: a sua história. E histórias me encantam. Quando estão vinculadas a memórias afetivas, irradiam para o ambiente...”, diz ela, que se orgulha da mesa que mantém em casa, com seu tampo de mármore branco... quebrado!
“Eu a usava para fazer panetone. Certa vez, me empolguei na sova e o tampo se quebrou ao meio”, diverte-se. Hoje, o móvel faz as vezes de aparador, “cheio de plantas, com seu tampo quebrado. E com sua história”. Já o prato banho-maria para papinha que pertenceu ao irmão, mesmo trincado, está pendurado na parede, entre obras de artistas contemporâneos.
Conceito
O artista plástico Lucas Dupin vem se debruçando sobre o wabi-sabi desde 2011, quando integrou exposição homônima a convite da curadora Thereza Farkas e, instigado, passou a pesquisar a visão surgida por volta do século XV no Japão, com base nos ideais do zen budismo.
Sobre o termo, aliás, Lucas adverte que não se trata de uma filosofia, mas de uma forma de se relacionar com a vida. “A questão da definição do wabi-sabi é, de fato, bem problemática. Primeiramente, não há uma palavra que a traduza para o português. Um dos livros que estudei fala que, no seu sentido mais amplo possível, seria um modo de ser e estar”. Seja como for, prossegue ele, o wabi-sabi transcende a questão do objeto e, num espectro mais amplo, refere-se muito à questão da transitoriedade, da impermanência. Inclusive da humana. “Mas quando é visto neste campo da decoração e das artes, é apontado em objetos que guardam as marcas do tempo, ou em construções que prezam pela essência”.
Lucas lembra que a questão da transitoriedade e da impermanência sempre estiveram, de alguma forma, presentes em seu trabalho. No caso específico da exposição “Wabi-Sabi”, ele apresentou dois trabalhos. “Coleção Inútil” expunha cem aquarelas de bitucas de cigarro que catava nas ruas, e a série “Homenagens”, um calendário composto por fotografias tiradas em momentos distintos a partir da claraboia do estúdio que ocupou no Canadá.
“No calendário, apaguei a possibilidade de se localizar. Via-se só a transitoriedade de espaço, tempo e lugar”. Lucas, que inclusive deve passar uma temporada no Japão para se aprofundar no tema, lembra que, em sua casa, há cantos inspirados neste pensamento – caso do que aparece na foto abaixo, na qual a luz que adentra a janela compõe uma cena com o retrato de uma de suas obras, um vaso de flores e estalinhos, desses que as crianças brincam nas festas juninas, deixados espontaneamente pelo filho sobre a mesa. Aliás, com esse exemplo, Lucas esclarece que não se deve vincular o wabi-sabi apenas a objetos antigos ou antiguidades.
De toda forma, Maria Fernanda argumenta. “Prefiro uma casa em que a imperfeição vira prosa. Que a gente não se cansa de olhar e imaginar cada história que tem por trás de detalhes inusitados”.
Pela poltrona vermelha da foto ao lado, Antônio Carlos Figueiredo já recebeu várias ofertas – inclusive de decoradores. Mas não, ele não sucumbiu à tentação de vender a peça, e a mantém tal como está, com direito a rasgos, manchas e desgastes. Mesmo não se norteando pelo wabi-sabi, o objeteiro acaba praticando, transversalmente, um de seus nortes: o de não interferir na ação do tempo nas peças que compõem o seu singular e instigante Museu do Cotidiano, iniciativa que, ressalta, é 100% privada, sem apoio do poder público.
Hoje, o Museu do Cotidiano abre suas portas mediante agendamento prévio. Mas quem passa em frente ao imóvel que abriga o notável acervo, na rua Bernardo Guimarães, 1.296, a julgar pela discrição, nem imagina a verdadeira caverna de Aladim que ali se esconde.
Mas, bem, Antônio enfatiza: não se trata de obras de artes, de uma galeria. Ele também refuta veementemente a chancela de “colecionador” ou a pecha de acumulador. “Não sou. Meu foco é o cotidiano. O objeto pode ser inclusive de hoje – se for interessante, cabe no museu. Procuro objetos peculiares, que transmitam uma história pela ideia de quem os criou”, diz ele, que desafiou o visitante a adivinhar a função de objetos hoje não mais fabricados.
Atualmente organizando as cem mil peças do galpão (lembrando que ele tem outros depósitos) no um quilômetro de prateleiras que virariam sucata e que acabou de adquirir, Antônio Carlos se posiciona, até certo ponto, contra a restauração. “As marcas também contam a história do objeto – eu, na verdade, gosto delas”. Tanto que ele não descartaria uma peça por ela ter cupins, por exemplo. “Vou te contar uma coisa: nós vamos morrer e os cupins e baratas vão continuar sobre a Terra”, pontifica, entre um exemplar da primeira TV que chegou ao Brasil, trazida por Assis Chateaubriand, da cadeira Sérgio Rodrigues ou da máquina de costura que foi da mãe de Estêvão Pinto.
A ceramista Sonia Imanishi recebeu, semana passada, uma boa notícia: além de ter sido selecionada para participar da 1ª Grande Exposição de Arte Bunkyo, que será realizada no final de outubro deste ano, em São Paulo, foi agraciada na iniciativa com o prêmio de Menção Honrosa. “É um privilégio estar fazendo o que realmente amamos”, celebra a descendente de japoneses que, mesmo não seguindo ortodoxamente os preceitos do budismo, adotados por seus antepassados, consegue fazer uma conexão entre o wabi-sabi (no caso, atrelado ao zen-budismo) e a sua vida.
“O conceito de beleza dentro da imperfeição, da impermanência da vida, da simplicidade. Aprender a viver, sobreviver e transformar em meio às adversidades da vida. É o que tenho tentado seguir em frente com humildade na cerâmica, através do barro que levou minha filha, buscando transformá-lo em belo. A cada queima, uma surpresa, aceitando sua imprevisibilidade”, discorre ela, com lirismo.
A citação à filha e ao barro que a levou evocam uma tragédia com a qual todo o Brasil se sensibilizou e se solidarizou. No réveillon de 2010, a filha única de Sonia e Geraldo Faraci, Yumi Faraci, estudante de arquitetura, então com 18 anos, foi uma das vítimas de um desmoronamento de toneladas de terra ocorrido em Angra dos Reis, em função das fortes chuvas, e que destruíram a pousada da família.
O wabi-sabi, Sonia relaciona não só a impermanência da vida como também à atitude de humildade perante a existência. “Minha vida tem tudo a ver com isso – na verdade, a de todo mundo”. Na cerâmica, ela aplica o olhar com o filtro do wabi-sabi quando o próprio processo de queima faz com que a peça tome outro caminho do que o inicialmente planejado. “A verdade é que não temos o controle das coisas”, reconhece.
Sonia lembra outra técnica do país de seus ascendentes, a Kintsugi, que vem a ser a arte de reparar a cerâmica que se quebra com uma mistura de laca e pó de ouro. Detalhe: o reparo fica aparente, como veios.
O conceito propõe um olhar sobre as “feridas” da cerâmica. Esse tipo de restauração (que não pretende ser imperceptível) celebra a vida cotidiana, e, ao fim, acaba conferindo, à peça, ainda mais valor.
Poltrona rasgada
A professora universitária Fábia Lima hoje mora em um prédio localizado na Serra que tem todo um valor agregado por ter sido projetado por um renomado arquiteto. No entanto, recentemente, alguns condôminos propuseram dar início a uma obra na qual algumas das características que foram pensadas pelo projetista seriam trocadas – o piso, para citar um exemplo, seria substituído por porcelanato.
“Eu e meu marido fomos contra, pois descaracterizaria um prédio que tem toda uma história por trás”, diz ela. Por ora, a reforma foi para o estaleiro, para alívio do casal. É ponto pacífico que este posicionamento não torna Fábia refratária a modernidades – prova são os citados quadros do grafiteiro Binho Barreto, espalhados pela sala, que dialogam com peças vintage. A arquiteta Paty Fernandes endossa: “Também tenho, em casa, peças novas, contemporâneas, que criam um contraponto às antigas e evitam a ‘datação’ da decoração”.
Fábia lembra o caso recente de um quiproquó que ganhou a mídia, a partir do fato de uma mulher não ter deixado o filho de outra, que estava visitando sua casa, mexer num boneco que era item de coleção. Sem tomar partido do caso específico, ela brinca que, em sua casa, é bem diferente. “Aqui, criança pode mexer em tudo”, estabelece.