“É uma discussão que está preocupando muita gente, mas as leis e códigos de ética só existirão a partir do momento em que o problema se apresentar”, observa a professora da UFMG e integrante do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas Joana Ziller. “Pessoalmente, acho que é bobagem nos preocuparmos se a máquina vai ser mais inteligente que a gente, ela vai ser do jeito dela. O que precisamos, ao olhar para essas discussões, é nos despir dos preconceitos. Elas nos amedrontam, mas evitá-las não faz com que as transformações parem de acontecer. Precisamos lidar abertamente com isso para encontrar os caminhos mais satisfatórios para as pessoas”.
O que a tecnologia já trouxe da ficção para a realidade
Renné França é pós-doutor em comunicação social pela UFMG e professor de cinema e audiovisual no Instituto Federal de Goiás. Está finalizando seu primeiro longa-metragem, “Terra e Luz”, que se passa em um futuro distópico. Convidado pelo Pampulha, ele analisa as séries e a relação entre ficção científica e tecnologia.
Do ponto de vista narrativo, a premissa da criação que se volta contra o criador não é nova. Na sua opinião, por que esse é um tema tão recorrente na ficção na científica?
É um tema eterno, presente nas mais antigas mitologias. O exemplo mais clássico é o de Lúcifer, o anjo que se volta contra Deus, que é o exemplo máximo de criador. Há algo de irresistível nesta relação criatura e criador que diz muito da natureza humana. Se a criatura é feita à “imagem e semelhança” do criador, superá-lo é superar a si mesmo e é nisso que se baseiam esses mitos que buscam compreender nossa própria humanidade: nós queremos sempre superar a nós mesmos. Por outro lado, somos também criadores: somos pais, mães, programadores, escritores, contadores de caso. Isso dá uma complexidade à relação que fascina o leitor/espectador, pois somos criatura e criador, filhos e pais. A ficção científica é uma forma moderna de narrativa que busca superar a mera fantasia mágica dos mitos antigos com um viés científico, mas suas melhores histórias são aquelas que na verdade atualizam esses mitos e temas eternos. E em um mundo tão tecnológico como o que nós vivemos, a ficção científica tem uma potência maior para nos instigar deixando aquele sentimento de “e se for possível? E se isso acontecer mesmo?”. Então, o tema do criador contra a criatura retorna pelo viés tecnológico – mesmo que uma tecnologia fantasiosa como em “Frankenstein” –, normalmente na relação homem e máquina: “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “O Exterminador do Futuro”, “Matrix”, “Blade Runner” e, claro, “Westworld”, são filmes que atualizaram muito bem este mito. Isso porque estamos o tempo todo em contato com a máquina, seja um carro, um computador, um telefone. E eles foram criados por seres humanos, mas para a maioria de nós são misteriosos. Há um sentimento de dúvida que a boa ficção científica consegue capitalizar e canalizar para questionamentos como “e se eles se voltarem contra mim? E se aquilo que o homem criou causar a própria destruição do homem?”.
Nesse sentido, o que “Westworld” traz de novo ao abordar o tema?
A série expande o conceito de realidade simulada ao tratar o parque como um videogame de mundo aberto. A criatura não é um único robô, ou um conjunto de máquinas, mas todo um mundo, toda uma realidade. Há um microcosmo no parque, com criaturas diversas que vão desde os cavalos até seus personagens principais. Eles se relacionam, habitam aquele local e fazem dele algo vivo. Não se trata mais de Deus e Lúcifer, mas de Deus e o mundo. O criador cujo embate não se dá com uma criatura, mas com todo o mundo que ele criou. É um tema ainda mais poderoso porque nos atinge em questões que perpassam a noção de sentido da vida, mas que se realizam em reflexões sobre destino, coincidência, alma gêmea, acaso. Os robôs de “Westworld” seguem um roteiro que se repete todos os dias, como personagens de um jogo. Este é o “destino” deles? Se pensarmos em destino como uma narrativa de nossa vida escrita por um ser superior, sim. Mas os humanos que são os jogadores, os turistas no parque, podem modificar este destino. Isso nos confronta com a noção de acaso. Temos destino, temos acaso, mas temos acima de tudo controle: todo o ambiente é controlado e no dia seguinte a narrativa, o “destino”, se reinicia. A maioria de nós gostaria de uma segunda chance em algum aspecto da vida. Mas se tudo é controlado por seres superiores, há realmente uma segunda chance? Temos mesmo uma vida ou estamos presos a um destino pré-concebido? O que a série parece estar querendo colocar em seus primeiros episódios é que é possível uma emancipação pela consciência. Quando a máquina tem consciência de sua natureza e pensa por conta própria, ela quebra o “destino”, ou em termos humanos, o dogma, a casta, a classe social, as relações de produção, o autoritarismo. Um dos precursores do Iluminismo foi Descartes com o seu “penso, logo existo”. Outro foi Newton. Mas em “Westworld” não temos uma maçã como símbolo catalisador do pensamento, e sim, uma mosca ao final do primeiro episódio. Vai ser curioso poder acompanhar esse “iluminismo das máquinas”.
“Black Mirror”, embora também trate das possíveis implicações negativas dos avanços tecnológicos na vida humana, o faz por outro caminho. Que caminho é esse e que possibilidades narrativas ele abre?
“Black Mirror” é a ficção científica mais próxima da fantasia. Uma espécie de realidade paralela ao estilo de séries antigas como “Além da Imaginação”. Nesse caso, temos uma representação que é da sociedade atual, mas com a ficção utilizada para ampliar certos aspectos. Se “Westworld” promove uma discussão que é mais da ordem filosófica e moral, “Black Mirror” é sem dúvida uma série de debate social. A ficção científica é um dos gêneros mais ricos para a crítica social, pois reimagina o presente de forma a deixar seus problemas mais claros em um futuro que é consequência direta deste presente. Com sua estrutura de histórias independentes, “Black Mirror” permite que acompanhemos diversos aspectos desta atualidade. Coisas que fazemos hoje em dia, e a série usa a ficção científica para nos fazer questionar nossos próprios hábitos atuais.
E que paralelos você consegue traçar entre as duas produções?