Altar da única visita de um Papa a Minas Gerais, palco dos primeiros passos de um dos mais icônicos grupos de teatro de Belo Horizonte, tombada como patrimônio histórico e artístico brasileiro: a praça do Papa parece hiperbólica por vocação. Aos pés da Serra do Curral, cercada de espaços turísticos, como a rua do Amendoim, o mirante e o parque das Mangabeiras, o lugar se tornou espaço de encontro e não foge à rota de quem visita a capital mineira.
Batizada com nome masculino – oficialmente, é a “praça Governador Israel Pinheiro”, em homenagem ao político que governou o Estado entre 1966 e 1971 –, a praça do Papa nasceu das mãos de duas mulheres: Marieta Cardoso Maciel e Raquel Teixeira Rezende. São elas que assinam o projeto arquitetônico responsável por driblar os acidentes geográficos e dar conta de uma extensão atípica para uma praça (são 37.300 m²). O resultado é, sem dúvida, o mais importante legado de suas carreiras.
Do alto de seus 70 anos, Marieta fala afetuosamente deste patrimônio mineiro. “Todos os projetos relacionados à praça do Papa me deram muito trabalho”, lembra ela, entre risadas. E fala com a autoridade de alguém que já se considera uma “parqueira e praceira”. É que dos 46 anos dedicados à arquitetura, desde recém- formada ela se dedica a projetos de parques e praças. Falar de espaços públicos, então, tornou-se a especialidade da professora recém-aposentada, que há 40 anos leciona sobre o tema na UFMG – sendo criadora do Programa Arquitetura Pública, com o professor Leonardo Barci Castriota.
De altar a palco
Por ter trabalhado para a Secretaria de Obras do Município depois de sua graduação, em 1971, seu repertório de projetos de parques e praças é vasto. “Algumas das praças que projetei nem existem mais”, reclama. Mas é a praça do Papa o seu xodó. “Com a vinda de João Paulo II, começou a história”, recorda.
“O altar, feito em madeira, precisei projetar em uma semana! Porque o Papa já estava vindo!”. Feito de madeira, tinha que obedecer ao rigor da Cúria da Igreja, embaixo do altar devia haver um espaço reservado para o líder católico. “Foi tudo feito muito rápido! O mestre de obras, lembro, arrancou o projeto da minha prancheta e correu para executar!”
Em compensação, o trabalho acabou se convertendo em um momento único na vida de Marieta. “Pude assistir à missa do altar, no mesmo lugar que estava João de Deus”, emociona-se.
“Eu nunca tinha visto antes e nunca vi depois tanta gente reunida!”, lembra, com razão. Para se ter ideia, no último Carnaval o bloco que reuniu maior número de pessoas em um mesmo lugar foi o Baianas Ozadas, agrupando 500 mil foliões e marcando recorde de público. Na visita do representante do Vaticano, havia quatro vezes mais pessoas. Certamente, ver o usufruto público de um espaço comum foi fundamental para a trajetória de Marieta.
A passagem do pontífice por ali, é verdade, reverberou não apenas na vida da arquiteta. A própria administração municipal, à época comandada pelo então prefeito Maurício Campos (“homem atento à importância dos espaços públicos para a cidade”, elogia), decidiu construir no lugar um memorial. Mais uma vez, Marieta e Raquel conduziram o projeto, inaugurado em 12 de dezembro de 1981. “Por conta da topografia, fizemos dois platôs e, contando com a notoriedade de João Paulo II, até os pisos usados foram doados”, rememora.
Marieta explica que, com o projeto, priorizaram manter viva a memória daquele 1º de julho. Para esse propósito, foi erguido na praça o Monumento à Paz, feito em ferro pelo artista Ricardo Carvão Levy.
Analisando o desenho do projeto, a arquiteta pontua que o lugar é quase um anfiteatro. Por isso, não se surpreende que tenha sido palco de espetáculos essenciais do Grupo Galpão. “Fico feliz com este tipo de uso destes espaços”, diz. Afinal, assim a praça mantém sua vocação para um lugar de encontro, “como deve ser com todos os espaços públicos da cidade”.
Apego
“Sempre peço que meus alunos criem projetos para áreas que estão em vias de ser privatizadas e apresentem para os órgãos competentes”, diz ela, para quem “estes espaços são mais importantes para o meio urbano que os privados” e, afinal, “sem eles, a cidade vira apenas um dormitório”.
É com essa convicção que ela cobra mais “investimento em manutenção e divulgação dos parques e praças da cidade”. Principalmente, diga-se, para as áreas de grande concentração, que, para ela, sofrem com pouca iluminação, sujeira, ocupação irregular com barracas e depredação.
Este também é o caso da praça do Papa. Embora não esconda o orgulho de saber que, no ano passado, o local foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ela alerta que “falta manutenção” na praça.
Quando fala do que categoriza como “desleixo”, Marieta se mostra decepcionada. “O poder público não entende os espaços públicos como estratégicos”, critica. “Mas, como dizia um colega, tenho que desapegar, porque a praça não é minha”, afirma, tentando se conformar. Mas essa não é uma tarefa fácil: a arquiteta viu a concepção, sabe quanto custou e, principalmente, viveu a história destes lugares. Dessa maneira, mantém-se inquieta, inconformada. Para ela, afinal, “diferente do que se pensa, os lugares comuns, públicos, não pertencem a ninguém, mas sim, a todos”.
Premiada
Marieta Cardoso Maciel é um nome decisivo para a cartografia belo-horizontina. Por 20 anos, até a década de 1990, ela atuou junto à prefeitura de BH como “parqueira e praceira”, como se intitula. Além da praça do Papa, a arquiteta, que sempre optou por régua e compasso ao uso de computadores, assina projetos como a praça Alaska, na região Centro- Sul, a praça São Francisco de Assis e a praça João Alves, na região Norte. No último sábado (2), seu trabalho foi laureado com o 12º Prêmio Arquiteto e Urbanista do Ano, da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), que a considerou a “arquiteta do ano” no setor público.
Praça do Papa: palco do teatro
A verdade é que o Grupo Galpão, fundado em 1982, sempre teve relação umbilical com os espaços públicos de Belo Horizonte. Ainda nos primeiros anos da companhia, os atores se viram em situação complicada por fazer de parques e praças seus palcos. “Ainda era ditadura, aquele período complicado, quando fizemos uma apresentação no Parque Municipal e acabamos detidos”, lembra o ator Eduardo Moreira. Ele recorda que havia uma lei que proibia eventos que provocassem aglomeração no local. Os policiais, diz bem-humorado, “foram até educados e esperaram a gente terminar a apresentação para nos levar”.
FOTO: Guto Muniz/Divulgação |
Grupo Galpão na apresentação histórica de “Romeu e Julieta” na praça do Papa, em 1992 |
Se a história, por si, diz muito da relação do grupo com o espaço urbano, é na praça do Papa que tal história se consolidou. “Nós fazíamos espetáculos na praça Sete, na praça da Liberdade, na Savassi... Sempre tivemos essa vocação de ocupar o espaço comum”, lembra Eduardo. Mas, comemorando a primeira década de trajetória, no ano de 1992, “o Galpão já era acompanhado por multidões”. Foi por isso que o ator sugeriu que a estreia da peça “Romeu e Julieta” em BH se estabelecesse na praça Governador Israel Pinheiro.
Claro, a estética de um anfiteatro do espaço também contou. “A praça do Papa se tornou um lugar totalmente ligado a nossas apresentações”, comenta a atriz Inês Peixoto, que traz na memória outro momento emblemático: a missa celebrada pelo líder da Igreja Católica, João Paulo II, em 1980, quando ela tinha 20 anos. Hoje, ela examina que as apresentações do Galpão no lugar se tornaram “um rito quase inacreditável: chegamos a colocar quase 8.000 pessoas naquela geografia de quase um teatro grego”.
Espaço de celebração do teatro, como definem Eduardo e Inês, a praça se tornou uma das casas da companhia. “Sempre que estamos comemorando algum aniversário, fazemos apresentações lá”, lembra Inês. Neste ano, por sinal, soprando velinhas dos 35 anos do grupo, a tradição foi respeitada.
“Precisamos desconstruir esse medo do espaço público”, é o que pontua Inês. Para ela, “ruas e praças não podem ser lugares associados à violência”, e não devem ser “usados apenas para manifestações políticas”, mas também precisam se guardar como “lugares de encontro e celebração”.
De uma perspectiva um tanto poética, aliás, a praça do Papa é síntese da harmônica relação do Grupo Galpão com BH. À frente, a Serra do Curral, símbolo da capital mineira, ao fundo, a própria cidade. “Montamos o cenário e a plateia tem ali a vista panorâmica, uma das mais amplas de Belo Horizonte”, comenta Eduardo, para quem tais imagens dizem muito sobre como o Galpão abraça e é abraçado pela cidade e seus habitantes.