Histórico

Enfim, o estrelato: empreendimentos renovam olhar sobre o Mercado Novo

Grande promessa dos anos 60, prédio é ocupado por novas e diversas lojas, sem interferência na identidade e na dinâmica do espaço

Por Alex Bessas
Publicado em 27 de janeiro de 2019 | 03:00
 
 
 
normal

Em menos de dois meses, é a quinta vez que a administradora Regina Soares, 36, sobe as rampas do Mercado Novo. Mesmo sendo moradora de BH, tanta assiduidade é atípica. Ao longo dos anos, afinal, o lugar nunca foi exatamente um destino para ela. Desta vez, a moça foi acompanhada de três amigos. Quase como uma embaixadora, apresentava a eles cada detalhe – desde o céu avermelhado do fim de tarde, que pode ser visto pelas frestas dos cobogós, até os simpáticos banheiros, ornados com espécies verdes, como espadas-de-são-jorge e jiboias.

Vale registrar: não é só Regina que se empenha em apresentar a amigos sua mais nova descoberta. Basta sentar nos improvisados banquinhos (feitos de caixotes de feira empilhados, que também fazem as vezes de engradados), para ouvir aqui e acolá os novíssimos frequentadores do local explicarem aos estreantes como conheceram a esse simpático e já badalado cantinho no centro nervoso de BH.

Ocorre que o Mercado Novo ganha status de novidade à medida que se instala no espaço uma nova ocupação, que vai ganhando corpo no segundo piso do prédio – movimento este que vem sendo chamado de “Velho Mercado Novo”. “Sempre associei esse lugar à Galeria do Ouvidor, mas agora também tem um quê de Maletta”, compara Regina, bebericando sua cerveja em frente a uma loja de velas.

Com negócios que se complementam, o lugar conta agora com a Distribuidora Goitacazes, que serve garrafas de cerveja artesanal. Logo em frente funciona o Cozinha Tupis, de culinária criativa e simples. Nas proximidades está a Charcutaria Tapera, que vende embutidos e defumados artesanais. O café da manhã fica por conta da Copa Cozinha e seus quitutes variados. A Super Câmera completa o time com serviços dedicados à fotografia analógica. E muitos outros empreendimentos vão ganhando os corredores, convivendo em harmonia com antigos comerciantes locais.

O resultado é a presença de gente como a bióloga Camila Teixeira, que superou uma certa desconfiança e deu uma chance ao Mercado Novo. Em sua estreia por lá, a moça é só elogios: “Desde que entrei, lá de baixo até aqui, estou gostando de tudo!”.

Vida nova

Com 55 anos, é curioso como esse cubo de 36 mil metros quadrados estruturado em cobogós e concreto voltou a ser festejado, atrair renovados olhares e ser anunciado como a novidade da estação. Detalhe: recobrar a memória sobre a primeira vez que o mercado foi tratado como promessa é tocar em chaga ainda aberta.

Em 1962, anunciava-se um empreendimento imobiliário que, à época, correspondia em importância e magnitude à construção da Cidade Administrativa. Um prédio que cumpriria a vocação tida como nata de BH: cidade fundada sob o signo da modernidade, a capital carecia de um mercado que cumprisse com rigorosos critérios estéticos e sanitários e atendesse a sofisticação desejável ao projeto belo-horizontino.

Não era o caso do Mercado Central – que funcionava basicamente como uma feira, em tendas sobre o chão de terra. Urgia construir um espaço vultoso que assentasse tanta gente e pudesse se tornar “o principal mercado municipal da cidade”. “Criado para você vender mais e melhor”, dizia um anúncio de então. Capricho da história, o título se manteve ao Mercado Central, que, sob a liderança do visionário Olímpio Marteleto (1918-2010), foi ganhando a forma que hoje detém.

Sem dúvida, um revés e tanto para o Mercado Novo, que sofreu com desinteresse generalizado, culminando na falência da construtora responsável pela obra, entregue inacabada.

Da construção do espaço, em 1963, até hoje, o prédio foi sendo ocupado de forma esparsa. No subsolo, restaurantes e lanchonetes populares, que atendem os trabalhadores da região, além de lojas de temperos e condimentos. O primeiro piso concentra, além de um grande parque gráfico, lojas de uniformes e oficina de instrumentos musicais. O terceiro passou a ser reconhecido pelas festas, como a “Transa” e encontros de blocos de Carnaval. E o quarto é o andar ainda não concluído, que pertence à Prefeitura de BH. Além disso, passou a receber a feira livre da madrugada, que atende os mercados e os restaurantes da cidade. Falando em madrugadas, está lá um dos principais redutos da boemia, o bar Vagalume.

Mesmo assim, o Mercado Novo não despertava a mesma atenção que seu irmão mais velho, tido como cartão-postal da cidade. Separados por apenas um quarteirão e meio, o prédio “sofreu uma longa maré de azar e simplesmente não aconteceu”, como aponta Gabriel Filho, superintendente do espaço. Ele reconhece que já teve por lá dias desanimadores, diante de projetos nada promissores como transformar o local em camelódromo ou em shopping.

Felizmente, essa sensação de um certo abandono parece ser página virada. Desde o final do ano passado, empreendimentos diversos têm atraído um público igualmente heterogêneo. O velho prédio, que até hoje tem áreas inacabadas, está bombando e dá firmes passos para entrar na rota turística da capital. “Parece que BH descobriu a gente”, anima-se Gabriel.

Futuro

Sensivelmente empolgado, o superintendente desce as rampas de acesso, por onde trafegam pedestres e veículos, e, de imediato, justifica seu ligeiro atraso: estava em uma reunião sonhada há anos e que vai garantir a ocupação de um corredor inteiro do prédio com a instalação de uma movelaria, digamos, um tanto quanto “hypada” – como dá para perceber pelos croquis que mostra. E esta é apenas uma das várias propostas de ocupação que ele vem recebendo. Até o final de 2019, a expectativa é que todas as 90 lojas disponíveis no segundo andar do Mercado Novo sejam ocupadas por um mix diversificado de produtores.

Quem primeiro puxou o fio desse novelo foi Rafael Quick. Fundador da Cervejaria Viela, o rapaz viu o espaço dedicado ao bar Juramento 202, no bairro Pompeia, ficar pequeno. Então, no final do ano passado, inaugurou a Distribuidora Goitacazes – onde, pela primeira vez, a cerveja artesanal, de fabricação própria, passou a ser engarrafada – e a Cozinha Tupis, um em frente ao outro.

O desejo de empreender no Mercado Novo já vinha de anos. A oferta inicial era que abrisse um espaço no terceiro piso, que recebe diversas festas noite adentro. Mas Quick queria algo mais “sossegado”. Bastou uma visita para perceber a potencialidade inexplorada no segundo piso, que até então era usado basicamente como estacionamento.

Aposta certeira, o empreendedor ainda vai estrear, na próxima semana, um terceiro estabelecimento por ali: uma cafeteria, como ele mesmo explica, enquanto carrega sacas de grãos de uma sala para outra. Simultaneamente, expõe que, desde o início, esse novo e orgânico movimento tem como premissa se integrar ao lugar: “É importante para nós manter as características de um mercado”. E aí se incluem o atendimento em balcão, sem garçons, e as conversas que a escolha possibilita.

Entre os belo-horizontinos que descobriram o lugar, como constatou Gabriel, está Gustavo Miranda, 41, que está em seu quarto happy hour por ali, acompanhado pela terceira vez Elias Oliveira, 44. “Aqui nada é engessado, o que é ótimo, pois foge dessa coisa gourmetizada”, elogia. A dupla trouxe o novato Gil Soares, 38. “Eles (os responsáveis pelas lojas) saíram da caixinha!”, brinca, em referência ao formato da edificação.

 

O novo e o velho em harmonia

“Em dois meses esses corredores terão vida nova”. É o que prevê Bernardo Silva, sócio da Super Câmera, uma das novidades do Mercado Novo. E a verdade é que já fazia tempo que esse espaço dedicado à fotografia analógica, contando com revelação, venda de filmes e outros acessórios e até aluguel de câmeras, negociava abrir portas no prédio. “Quando o Rafa Quick falou com a gente desse movimento, reascendeu o desejo de vir para cá”.

História parecida com a de Henrique Fonseca, que inaugurou lá a Charcutaria Tapera. Ele já viveu na Espanha e trouxe desse país a ideia do negócio – imprimindo, tão logo, uma identidade mais nossa ao negócio. “Queremos enaltecer a mineiridade”, expõe, em consonância com os objetivos do movimento como um todo, que reconstrói perspectivas para o lugar.

Também interessada em resgatar tradições, Maíra Sette abriu a Copa Cozinha, que, além de vender bolos por encomenda, disponibiliza uma grande mesa de café da manhã aos sábados e domingos – bem ao estilo do interior de Minas. Lugar que mexe especialmente com os antigos frequentadores, a Papelaria Mercado Novo empresta importância à arte e ao ofício da tipografia. O espaço, por sinal, funciona como alegoria da integração entre o velho e o novo, que ali coabitam.

“Estou aqui há 18 anos e estou achando fantástica essa virada de chave”, diz Reinaldo Gaúcho, 66. Embora há tanto tempo em BH, o porto-alegrense ainda faz o “r” soar tremido e é só elogios aos novos empreendimentos. “São simpáticos, inovadores e trouxeram um novo público para cá”, observa. Trabalhando até quase 22h, as quintas eram tidas como dias longos para o gráfico. Agora, são também momento de lazer. “Já que fico até tarde, curto ver esse movimento, o som (que vem de vinis) e, no final, bebo a ótima cerveja que eles fazem”, comenta, já correndo para servir mais um copo para a sua mulher e sócia.

Outro velho conhecido do lugar é Diomedes da Silva, 60. “Fiz o percurso da gráfica primitiva, a tipografia, até a atual, que é o design gráfico”, orgulha-se. Passeando pelos corredores com seu gato, o Amiguinho, ele aprova a nova ocupação. “Do final do ano para cá, já cansei de ver gente que vem à noite, fica encantada com o prédio e depois volta, durante o dia, para conhecer melhor esse lugar”, garante.

 

Reocupar espaços é tendência

Efeito da recente ocupação, o Mercado Novo passa a ser parte da engrenagem de uma tendência mundial: a reciclagem e a reutilização de lugares tidos como degradados. “A crise da energia dos anos 70 e o aumento da consciência ambiental mudaram o paradigma de construção, destruição e nova construção”, diz o arquiteto e urbanista Leonardo Castriota. Professor titular da UFMG, ele observa que o fenômeno costuma ser catapultado pelas “classes criativas”. “Jovens empreendedores, artistas e startups buscam lugares acessíveis, mas que não são visados pelo mercado imobiliário”, situa.

Exemplos não faltam, sendo um dos mais emblemáticos a região de Soho, em Nova York, que foi “ocupada por artistas nos anos de 1970 e rapidamente ressignificada” – um reduto que ilustra também a ambiguidade dessa dinâmica: “É um processo que traz nova vitalidade e uma nova atratividade econômica, mas, às vezes, graças aos pioneiros – esses jovens que descobriram novas fronteiras urbanas –, os operários que estavam lá antes deles acabam sendo expulsos do lugar, que começa a ser valorizado e se torna mais caro – temos, então, a gentrificação”.

O acadêmico ressalta que, no Brasil, esse tipo de movimento é muito incipiente. No caso do Mercado Novo, como em outros lugares de BH, essas classes criativas convivem harmonicamente com os grupos tradicionais, que já estavam lá. “É um ponto de equilíbrio interessante, onde os novos negócios dão visibilidade aos antigos e são complementares a eles”, diz.

 

Economia circular e valorização

É premissa do movimento Velho Mercado Novo integrar novos empreendedores aos tradicionais comerciantes do lugar e valorizar a identidade do prédio. “Nós partimos da ideia de uma economia circular, para fazer cascatear o dinheiro”, expõe Rafael Quick.

Como exemplo, ele explica que o chef Henrique Gilberto cria pratos tendo como base alimentos comprados nos comércios do lugar. O cardápio, portanto, é paradoxalmente simples e criativo, variando semanal e até diariamente – de acordo com as frutas e os legumes da época. Maquinário, móveis e painéis também foram comprados no lugar, valorizando ofícios e práticas que por ali se estabeleceram.

Histórias paralelas

Metafísica

A filósofa Maria de Lourdes Gouveia, autora do livro “O Mercado como Símbolo da Cidade”, vê o estatuto que rege o Mercado Central como uma força metafísica, que tornou o lugar esse ícone belo-horizontino.

Pilares

Olímpio Marteleto é visto pela filósofa como figura chave para o desenvolvimento do Mercado Central. Outra importante peça nesse tabuleiro é o doutor Athenágoras Carvalhaes, que partiu de uma perspectiva humanista para a feitura do estatuto.

Pegadas

Os passos, agora, são repetidos pelo Mercado Novo.

Paralelos 

Histórias que se cruzam a um quarteirão e meio de distância, estes dois mercados guardam expressivas diferenças, mas também similaridades.

Lá como cá

É possível perceber certa paridade entre essas figuras-chave dos dois lugares. O superintendente Gabriel Filho, assim como Marteleto, encarna o desejo de ver o prédio tomado de vida. Nos dois casos, ainda jovens eles conheceram os respectivos mercados. Filho trabalha no lugar há 40 anos, chegou lá aos 16 e ajudou a colar boa parte das placas que se veem por lá.

Conselho

Já o documento que rege a nova ocupação do Mercado foi elaborado por Rafael Quick. Assim como Carvalhaes, o rapaz buscou valorizar os comerciantes tradicionais do espaço e preservar a identidade do lugar.

Charcutaria Tapera

Quando

Qui. e sex., das 18h à 0h; sáb., das 12h à 0h; dom., das 12h às 18h.

Quanto

R$ 15 a R$ 18 (sanduíche) e R$ 35 a R$ 75 (tábua de frios e carnes).

Copa Cozinha

Quando

Sáb. e dom., das 9h às 18h.

Quanto

R$ 40 (café da manhã completo, até as 13h) e entre R$ 20 e R$ 30 (bandeja); delivery a partir de R$ 100.

Cozinha Tupis

Quando

Qui. e sex., das 18h à 0h; sáb., das 12h à 0h; dom., das 12h às 18h.

Quanto

Ficha a R$ 9 (pratos custam entre uma e cinco fichas).

Distribuidora Goitacazes

Quando

Qui. e sex., das 18h à 0h; sáb., das 12h à 0h; dom., das 12h às 18h.

Quanto

R$ 13 (garrafas de 500 mL).

Super Câmera

Quando

Ter. a sex., das 13h às 20h; sáb., das 12h às 21h.

Quanto

R$ 1,50 (impressão de uma foto), R$ 25 (revelação e digitalização de filme colorido) e R$ 30 (para preto e branco), R$ 60 (aluguel de câmera – inclui filme, revelação e digitalização).

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!