Projeto

Gentileza urbana 

Festival que acontece a partir de quarta-feira (26) na capital, no Circuito Liberdade, inspira comportamento mais cuidadoso e gentil com a cidade

Por Bárbara França
Publicado em 22 de outubro de 2016 | 03:00
 
 
 
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Certa vez, em uma de suas colunas, a escritora e psicanalista Maria Rita Kehl confessou que queria ser Deus para “governar” São Paulo, onde mora, por pelo menos dez anos. A proposta, assim que assumisse a prefeitura, era de tombar a cidade inteira durante esse tempo. Tudo deveria ficar como estava, não se construiria mais nada, não se derrubaria mais nada. Sua missão enquanto governante divina seria de melhorar o que já existia.

“Se é para movimentar dinheiro, invistam-se nos espaços públicos: ruas, praças, jardins, calçadas, iluminação, centros de lazer, prevenção contra enchentes – tudo o que faz, de um amontoado de moradias, algo parecido com a magnífica invenção humana chamada cidade”, comentava ela, que dizia terem essas propostas nada a ver com socialismo, urbanismo, ou mesmo religião. O ideal de cidade era, para Kehl, guiado pela palavra “delicadeza”. Algo que implica conceber a cidade como lugar de ampliação da esfera da liberdade e valorizar, mais que prédios, carros e viadutos, a vida urbana.

Com significados próximos, delicadeza é uma das qualidades frequentemente associadas à “gentileza”, termo que cada vez mais ganha espaço nas discussões sobre cidade. Intensificado ainda mais agora, em um período decisivo, pautado por eleições e especulação sobre o futuro do lugar onde vivemos. Em meio a esse turbilhão, acontece em BH, a partir da próxima quarta (26), o “Festival da Gentileza”. Organizado pelos projetos verbogentileza e Sustentarte, o evento traz oficinas, shows, palestras, feiras, picnics e intervenções que procuram inspirar um comportamento mais cuidadoso e gentil com a cidade (leia mais na página 4).

Cuidado

Conceito amplo, a gentileza, justaposta à palavra “urbana”, já foi usada até para designar ações simples que visam melhorar o trajeto dentro do transporte público da capital – quem não se lembra da seção “gentileza urbana” no Jornal do Ônibus, que instruía inclusive a não espiar a conversa do WhatsApp alheio? Na arquitetura, o termo fala mais especificamente de obras que favorecem o urbanismo e o paisagismo público do entorno, mas, de acordo com Rose Guedes, presidente do Instituto de Arquitetura do Brasil – Minas Gerais (IAB-MG), organizador do prêmio Gentileza Urbana, o que perpassa todas as manifestações de gentileza urbana é o cuidado e o respeito com o que é de todos.

“Não é só ajudar uma velhinha a atravessar a rua ou ceder lugar no ônibus. Isso se chama educação, é básico e uma obrigação. Gentileza urbana não é altruísmo para se autopromover ou caridade. É incorporar o outro nas suas atitudes. Pensar de forma sustentável, preservar o patrimônio, a memória. É afeto com a cidade e atentar para as pessoas que nela habitam”, destaca Rose, observando que isso reforça os laços de pertencimento com o lugar onde se vive e, assim, contribui para diminuir relações destrutivas que se estabelece com ele.

Clarissa Tomasi, 21, pode perceber com seus próprios olhos o potencial de transformação da gentileza urbana. A estudante de graduação da UFMG participou da construção de uma praça no bairro Carlos Prates, num ponto onde ruas podiam facilmente ser fechadas. A demanda partiu dos moradores, que escreveram em caixas penduradas nos postes como seria agradável ter uma praça para relaxar no bairro. Alguns deles se voluntariaram e, junto com estudantes, levaram o projeto adiante.

“Até churrasco na praça os moradores fizeram. Muita coisa não muda porque as pessoas acham que algo é assim e pronto ou acha que ninguém quer a mudança. E o que eu vi foi o contrário. Falta é diálogo. Gentileza urbana para mim é conversar com quem está do seu lado e saber o que pode melhorar a vida em comum”, aponta Clarissa.

No Centro

Num mundo em que as cidades estão cada vez mais hostis e excludentes, voltadas para o individualismo, com trânsitos violentos, árvores cortadas, Roberto Andrés, professor da Escola de Arquitetura da UFMG e editor da revista “Piseagrama”, acredita que a gentileza urbana pode ser pensada como resistência na medida em que chama a atenção para outros tipos de relações.

No entanto, promover ações mais humanas, segundo ele, não deve ser um amaciante para dar continuidade aos modelos de cidades que estão aí, muito pouco gentis. “Não adianta a construção de um prédio que contemplou uma pracinha ganhar um prêmio, mas criar uma série de outros impactos. A gentileza urbana deve estar no centro das discussões políticas. Gentileza urbana é o interesse coletivo e não a cereja do bolo de uma obra”.

Misturas, convívio, cultura 

A produtora cultural Patrícia Tavares caminhava pelas ruas de Londres quando se deparou com o painel “Before I Die”, da artista plástica taiwanesa/americana Candy Chang. Nele, instigados pelas reticências que seguem à inscrição “antes de eu morrer, eu quero”, transeuntes deixam grandes sonhos ou desejos de pequenas realizações ainda por finalizar nessa passagem pela Terra. Em meio a escritos como “comprar um apartamento”, “conhecer mais países” ou “me formar”, ela só conseguia pensar: “eu quero fazer algo é pelos outros, para a minha cidade”. 

Reconhecendo-se privilegiada por ter tido acesso a escolas boas, por ter um trabalho na área que ama e por, através dele, conseguir viajar pelo mundo, Patrícia resolveu canalizar sua vontade de realização para transformar, de alguma forma, seu entorno. O caminho escolhido foi o da gentileza, palavra que, em setembro deste ano se transformou no movimento verbogentileza e que, junto com o pessoal do projeto Sutentarte, organiza na próxima semana o “Festival da Gentileza”, em BH. 
 
"Quando procurei a Candy Chang para conversar, ela também me disse que sua proposta inicial com o muro sempre foi pensar o coletivo. Contei para ela a ideia de montar o painel em BH e ela topou na hora”, conta a produtora, que, para o festival, privilegiou uma curadoria que oferecesse várias maneiras de praticar a gentileza urbana. Seja através da música, com grupos oriundos de diversos países do mundo, seja através da dança inclusiva, da literatura e sua relação com o urbano e da discussão sobre o consumo conscientes e da economia criativa. “A banda ‘Fancy Trio’, por exemplo, é formada por uma chilena, uma russa e uma sérvia. Queríamos trazer essa mistura de culturas convivendo e o que de positivo pode surgir disso”. 
 
Pontes
 
O potencial da diferença e da perspectiva do outro é o que levou a artista Candy Chang, inclusive, a levar o painel “Before I Die” para mais de 70 países. “Cada vez mais as populações das cidades são maiores, mas estudos mostram que as pessoas se sentem mais isoladas do que nunca. Como as relações nos bairros têm declinado através das últimas décadas, eu acho que uma das grandes missões das cidades modernas é voltar a criar uma comunhão emocional”, destaca Chang. Para ela, a gentileza urbana é criar pontes entre vizinhos, da mesma rua ou do mesmo planeta. 
Maurício Meirelles compartilha da percepção. Coordenador da programação literária do festival, o arquiteto e escritor vê na gentileza urbana uma forma de estabelecer o diálogo entre diferentes. “Na nossa curadoria de literatura, por exemplo, a gentileza se manifesta na maneira diversa como abordamos o tema. Não é só a palavra escrita nos livros. A gentileza está também em contemporizar, abarcar mais gente. Falamos dos MC’s, de poesias projetada em prédios. Nos interessa a palavra que está na rua e é assim que procuramos chamar a atenção para o que é da dimensão pública”. O Festival da Gentileza vai até domingo (30). 
 
Destaques
 
Quarta (26)
Praça da Liberdade
16h Abertura do evento: portal da gentileza
18h Inauguração do Painel “Before I Die” para entidades, parceiros e apoiadores.
 
Quinta (27)
CCBB
19h30 Como a Gentileza e a Sustentabilidade podem inspirar projetos colaborativos, a ocupação do espaço público urbano e o fortalecimento da economia criativa e colaborativa? Com mediação do Beagá Cool e participação de: Candy Chang + Amadoria + Review Slow Living + Über trends + Quarto Amado + Guaja + Mooca
 
Dia 29/10 (sábado)
Praça da Liberdade
11h Fancy Trio
19h Quinteto Radio Swing com Be Hoppers
 
* Confira programação completa no site goo.gl/Fylgjc 
 
Oasis
O Jogo Oasis é uma ferramenta de mobilização comunitária aplicada por jovens empreendedores em diversas partes do mundo. Começou em 2003, em Santos, e já chegou a 19 países. Envolve jogadores e comunidade e é projeto de apoio para a realização de sonhos coletivos. Foi concebido para ser praticado de forma cooperativa para realização de algo em comum. "É necessário que as pessoas tenham mais autonomia coletiva, para que a gente possa substituir as relações sociais de dominação, por relações sociais de cooperação", afirma Lucas Alves, antropólogo e participante. 
 
Pimpex
O projeto é um braço do Pimp My Carroça, que foi criado para dar um “up” nos carrinhos dos catadores de lixo das cidades. Além de ter o carrinho grafitado e equipado com retrovisor, os trabalhadores recebem um kit com luvas, cordas, bonés e protetor solar visando melhorar a rotina de quem vive do comércio de materiais recicláveis. Em BH, já foram “pimpados” mais de 15 carrinhos. Neste domingo (23), acontece uma edição do Pimpex voltada para as catadoras (mais informações no link: goo.gl/PLDNeq). “A gentileza urbana do Pimpex está em trazer um ator até então invisível, tanto pelas pessoas quanto pelas políticas públicas, para o centro da discussão”, comenta Juliana Gonçalves, participante do projeto.
 
Projeto Sustentarte
É um evento cultural com características ambientais e sociais, composto por ações que acontecem simultânea ou isoladamente. São algumas delas feira de produtos e serviços sustentáveis, oficinas, lazer para crianças com resgate de brincadeiras, ações de coleta seletiva e reciclagem. “Ao buscar o pequeno produtor e valorizar o seu produto, estamos sendo gentis com quem produz de forma cuidadosa e com quem consome”, diz Ana Carolina Linares, produtora. 
 
Piseagrama
Além de produzir uma revista sobre espaços públicos, que articula e promove relações entre as artes, a política e a vida cotidiana, publicando histórias, ensaios críticos, jornalismo literário e práticas urbanas, o projeto realiza uma série de ações em torno de questões de interesse público. Entre eles, debates, micro-experimentos urbanísticos (como fechamento de rua para realização de piquenique com piscina pública), oficinas, campanha com propostas para as cidades, loja itinerante e publicação de livros. 
 
Engenheiros da Alegria
Idealizado por amigos da Engenharia Ambiental da UFMG, o Engenheiros da Alegria surgiu da vontade de agir também fora das salas de aula. Composto não mais só por estudantes, o projeto tem como um dos braços o “mão na massa”. Nele, os participantes ajudam a realizar o desejo de alguma comunidade, seja reformando creches, seja organizando uma feira. “Uma criança uma vez escreveu que a escola dela estava sendo transformada por pessoas muito legais, é emocionante”, conta Ana Beatriz Santos, voluntária.
 
Verbogentileza 
Movimento que procura levar ação ao substantivo “gentileza” - pensar gentileza, distribuir gentileza - e assim transformar as relações na cidade. Criado em setembro, o verbogentileza já realizou uma entrega de flores na Praça Sete e, junto com os membros da galeria Quarto Amado, promoveu a pintura de um muro antes desleixado no Mercado Distrital do Cruzeiro. Quem fez a arte foi Clara Valente. O verbogentileza atua através de redes sociais, em ações pop-up na cidade, além da realização do Festival da Gentileza. 
 
Beagá Cool
Negócio em rede que procura impulsionar e fortalecer novos negócios em BH. Trabalhando com a ideia de abundância, os membros do Beagá Cool partem do princípio de que na capital há espaço para todo mundo. “Há muita concorrência no mercado e costuma-se achar que não dá para conversar com o outro, afinal, isso significa perder público. Queríamos sair desse modelo, afinal, as cidades estão se transformando. Para nós, gentileza, é agir de forma horizontal”, destaca Sérgio Souto, co-fundador. Na foto, o Café do Amor, realizado aos domingos na Benfeitoria. 
 
 
 
 
 
 

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