Às vésperas do fim das Olimpíadas Rio 2016, uma hashtag criada logo no início dos Jogos ainda continua sendo usada nas redes sociais e, ao que parece, marcará por um bom tempo o evento esportivo realizado no Brasil. A “#OlimpíadaDasMulheres” começou a se difundir quando a judoca Rafaela Silva ganhou a medalha de ouro na modalidade peso leve (57kg) e a conquista foi celebrada não apenas como o primeiro ouro de uma mulher brasileira na Rio 2016, mas como o primeiro ouro do Time Brasil. No entanto, a julgar pelas situações em que ela aparece, não é só a medalhas que a hashtag se refere.
A #OlimpíadaDasMulheres está relacionada ao fato de um estádio inteiro gritar por “Marta”, a craque da seleção feminina, durante a partida entre Brasil e Iraque pelo torneio masculino de futebol. Também tem a ver com o público enchendo arenas para ver competições entre mulheres e aumentando a procura por camisetas e uniformes com o nome de suas “atletas-ídolas”. A hashtag também é acionada quando a ginasta norte-americana Simone Biles refuta a comparação de que seria “mais um Phelps”, corrigindo ser a “nova Biles”. Ou ainda quando a nadadora Joanna Maranhão vai a público para denunciar que o Brasil é racista, homofóbico e misógino e declarar que não vai se calar diante das manifestações de ódio destiladas a ela.
Com 45% de participação feminina, conforme o Comitê Olímpico Internacional (COI), esta edição dos Jogos é a mais igualitária nesse sentido até então e a primeira em que as mulheres puderam competir em todas as modalidades. Os dados impressionam quando lembramos que os Jogos modernos acontecem desde 1896, mas, de acordo com Joanna Burigo, co-fundadora do projeto Guerreiras Project, que discute gênero através do futebol (saiba mais em guerreirasproject.org/pt/), a marca deve ser pensada em um contexto de discussão sobre igualdade que ultrapassa os limites da internet e suas hashtags.
“A Olimpíada encontrou esse momento de intensa efervescência da chamada primavera feminista, em que as pessoas estão mais sensíveis a manifestações de preconceitos, machismos em todo e qualquer espaço. O esporte, claro, é um deles”, destaca. A partir dos Jogos, pesquisadoras de esporte e gênero e, sobretudo, atletas veem um mote para se discutir as – ainda gritantes – desigualdades entre homens e mulheres em relação a apoio e oportunidades.
Proibido
Mostrando o que considera ser sua “capacidade de superação e a força e o potencial da mulher”, a judoca Mariana Silva, 26, chegou à disputa do bronze na Rio 2016. Ela, que também participou da Londres 2012, acredita que uma Olimpíada possibilita um maior acesso a modalidades ainda pouco disseminadas e nas quais as mulheres competem. Mas, segundo Silvana Goellner, pesquisadora de gênero e educação física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, há menos de 40 anos isso não seria possível aqui.
No Brasil, até o fim da década de 1970, a prática do esporte profissional era praticamente proibida para mulheres. “As modalidades coletivas, como o futebol, as lutas e as de longas distâncias, por exemplo, eram vetadas sob a alegação de que não condiziam com o tipo físico feminino”, conta a pesquisadora, lembrando que, nas primeiras Olimpíadas, as mulheres só podiam competir no tênis e no golfe, modalidades consideradas mais “femininas”. “A situação só foi mudando de figura com muita luta para ressignificar seu espaço no esporte. Afinal, para as mulheres que queriam competir, esporte não era questão de enfeite, e sim lugar de empoderamento”, afirma Silvana.
Eliana Aleixo, 62, por exemplo, sempre quis ser profissional. E um dos pontos altos da sua carreira aconteceu quando ela integrou a primeira seleção feminina de vôlei a disputar uma Olimpíada pelo Brasil, em 1980, em Moscou. Avaliando a participação do time na época como não tão expressiva quanto tem sido nos últimos Jogos, a ex-atleta revela que uma das lembranças mais marcantes dessa experiência foi o contato com importantes nomes do esporte. “Mesmo que tenhamos ficado em sétimo lugar na Rússia, acredito que inspiramos toda a nova geração de mulheres que competiram com o vôlei nas Olimpíadas. Muitas se inspiraram em nós quando desejaram ser profissionais. Quanto mais competições femininas, quanto mais referência, mais inspiração para as novas gerações de meninas”, destaca a ex-atleta.
Ana Flávia Sanglard, 46, concorda. Tendo competido em Barcelona (Espanha) em 1992 e em Atlanta (EUA) em 1996, quando, junto com a seleção, conquistou o bronze para o vôlei, ela conta que tinha como referência a geração de Vera Mossa e Isabel. “Tínhamos potencial, o que precisava era de gente que acreditasse na gente e levasse nosso trabalho a sério, com treinamento, com investimento. É isso que os jovens atletas precisam, independentemente do gênero”, aponta a, hoje, empresária de jogadores.
Visibilidade
Sonhando um dia também disputar uma Olimpíada – “Quem sabe em Tóquio?” – a jogadora de futebol belo-horizontina Bruna Emilia, 24, no entanto, observa que, na maioria das vezes, é esse “básico” que ainda falta para as mulheres seguirem em frente no esporte. “No futebol feminino, recebemos mais ou menos 1% dos salários dos homens, quase nenhum clube assina carteira, há pouco patrocínio e praticamente não há espaço na mídia…”. Fora os comentários machistas que, segundo ela, representam um obstáculo a mais. “As pessoas me diziam que futebol era coisa de homem, que eu era ‘mulher-macho’ por querer jogar. Isso só mudou quando passei a integrar a seleção brasileira sub-17”, conta a volante do América, fã da jogadora Formiga.
Oficialmente, os Jogos terminam neste domingo (21), no entanto, a ativista Joanna Burigo, espera que a discussão não termine junto. “Se visibilidade é bom para a gente discutir a precariedade de muitas modalidades femininas, esse pode ser o ganho das Olimpíadas. Mas só isso não basta, a preocupação não deve ser só de quatro em quatro anos”.
Caminhada ainda é longa
Nas últimas semanas, a apresentação da ginasta mexicana Alexa Moreno na trave rendeu críticas ao seu corpo. Sem nenhuma preocupação com algum tipo de avaliação técnica, vários internautas ironizaram sua forma física, comparando-a inclusive com a porquinha Peppa Pig. Durante uma apresentação do “dream team” da ginástica artística norte-americana, formada por ninguém menos que a ultramedalhista Simone Biles, um comentarista dos EUA chegou a declarar que as atletas, com seus trajes e maquiagens, pareciam estar fazendo compras em um shopping.
Apesar da participação marcante das mulheres nos Jogos, com performances de alto rigor técnico como sempre se exigiu de qualquer atleta olímpico, muito da repercussão, de acordo com Joana Ziller, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon) da UFMG, continua preferindo reparar na aparência das atletas. “Fala-se mais da beleza delas e de detalhes pessoais do que se ressalta as qualidades que tem a ver com sua atuação no esporte. Pensa na polêmica que gerou o fato de a saltadora brasileira Ingrid Oliveira ter feito sexo na Vila Olímpica.
Ninguém nem cita o nome do parceiro. Ainda vivemos num mundo muito sexista”, comenta Joana, que está realizando uma pesquisa sobre o tema na Olimpíada. Segundo ela, é possível dizer que o espaço dado à cobertura das modalidades femininas ainda é menor e permanecem comparações que pouco elogiam as atletas em si, como “Marta é o Pelé de Saias”.
“Percebo que há uma atenção maior a esses comentários, que vez ou outra são rebatidos pelos próprios profissionais da mídia. Mas ainda são atitudes muito pontuais”, comenta. Cientes do potencial dos meios de comunicação em reforçar lugares e estereótipos, um coletivo de mulheres de São Paulo criou o “dibradoras”, projeto dedicado a discutir o lugar das mulheres no esporte e comentar a forma como elas são apresentadas nos veículos (facebook.com/dibradoras). Para as Olimpíadas do Rio, lançaram a série “Mais que Musas” (veja acima). “Uma atleta treina, se dedica, para chegar num grande evento e só é lembrada como um rosto bonito. Queremos que as pessoas conheçam mais atletas e mais suas trajetórias, dando a elas o reconhecimento que merecem”, aponta Roberta Nina, co-fundadora do projeto.
Alguns momentos em que as mulheres foram maravilhosas
Menstruação
A nadadora chinesa Fu Yuanhui virou notícia depois que revelou um dos motivos pelos quais acreditavam ter ido mal em uma prova de revezamento. “Minha menstruação desceu ontem e eu me senti muito cansada hoje”, comentou Fu. Através da internet, espectadores se disseram impressionados pela forma como ela falava abertamente sobre um “tabu”. Antes, a nadadora já havia viralizado ao descobrir que havia conquistado uma medalha de bronze nos 100m costas através de uma repórter, depois da competição.
Dando uma mãozinha
Em uma competição dos 5.000 metros feminino, a norte-americana Abbey D’Agostino tropeçou no calcanhar da neozelandesa Nikki Hamblin levando as duas corredoras para o chão. Quando Nikki se levantou, percebeu que Abbey tinha machucado o tornozelo. Ela ajudou a concorrente a se levantar e, juntas, terminaram a prova. A neozelandesa ficou em último e a norte-americana em penúltimo e, ao cruzarem a linha de chegada, as duas se abraçaram. Apesar do resultado, Abbey e Nikki disputaram a final.
Super Medalhista
Na última quarta (17), a japonesa Kaori Icho tornou-se a primeira mulher a ser tetracampeã olímpica em uma prova individual. A conquista veio na categoria até 58kg da luta livre feminina. Até então, em Olimpíadas, só cinco atletas tinha sido tetracampeões: Paul Elvstrom, da Dinamarca, na vela, entre 1948 e 1960; Al Oerter, dos EUA, no lançamento de disco, entre 1956 e 1968; Carl Lewis, também norte-americano, no salto em distância, entre 1984 e 1996; e Ben Ainslie, britânico, na vela, além de Phelps, tetra nos 200 metros borboleta.
Sou a primeira!
Quando recebeu sua segunda medalha de ouro na Rio 2016, a ginasta norte-americana lacrou com a frase: “Não sou a próxima Usain Bolt ou Michael Phelps. Sou a primeira Simone Biles”. Com cinco medalhas nesta Olimpíada, sendo quatro de ouro, ela já é considerada a maior ginasta de todos os tempos e vive ouvindo comparações com seu conterrâneo da natação. Biles também ganhou repercussão ao elogiar a performance da Flávia Saraiva na final da barra de equilíbrio. “Achei que a medalha seria dela, vi a série e achei ótima”.
De praia
A imagem da partida de vôlei de praia entre as egípcias Doaa Elghobashy e Nada Meawad e as alemãs Kira Walkenhorst e Laura Ludwig correu o mundo. Nela, ve-se as diferenças culturais através das vestimentas, como o uso do hijab (véu), seguindo a tradição conservadora islâmica. Mas a participação das egípcias foi marcante por ser a primeira dupla egípcia a competir no vôlei de praia em uma Olimpíada. “Uso o hijab há dez anos. Ele não me impede de fazer as coisas que eu amo, e o vôlei de praia é uma delas”, afirmou Elghobashy à Associated Press.
Judoca de ouro
Rafaela Silva conquistou a primeira medalha de ouro do Time Brasil. Negra, homossexual e vinda da Cidade de Deus, a judoca foi vítima de racismo após a eliminação nas Olimpíadas de Londres, em 2012. Em declarações à imprensa, Rafaela contou que foi chamada de “macaca” e de “lixo”. Londres foi sua primeira Olimpíada e, à época, a judoca só tinha 19 anos. Quatro anos depois de receber as críticas, a resposta foi o lugar mais nobre do pódio. Pouco depois, Mayra Aguiar também conquistou ao uma medalha no judô, dessa vez, de bronze.