De Bonfim, no interior de Minas Gerais, veio a antiga arara de metal para roupas. O estudante de engenharia de controle e automação, Marcelo Ribeiro, 26, aproveitou a breve estadia de férias na casa dos pais para ‘surrupiar’ o objeto que vai ajudar a organizar as peças e os adereços mais espalhafatosos. Afinal, eles logo se transformarão nas fantasias que ele vai usar no Carnaval de Belo Horizonte.
Por enquanto, a personagem escolhida foi a Mulher Maravilha, mas ainda há muita peruca, salto e glitter a ser usado antes de tudo se acabar na quarta-feira de cinzas. Afinal, desde que se pula Carnaval em BH, as fantasias brilham por toda parte, sejam as ricas e sofisticadas nos bailinhos, sejam as pitorescas e improvisadas descendo as ladeiras.
Resgatando o espírito burlesco de outrora, o Baile de Marchinhas Mestre Jonas promove, inclusive, um concurso de fantasias para valorizar toda essa criatividade presente na festa mais popular do país (leia mais na página 4). Mas não são só plumas e paetês que o folião deposita na confecção de seus trajes. Na pompa das Colombinas, nos losangos dos Arlequins ou na lágrima dos Pierrôs, aquele que veste a fantasia inaugura um período em que tudo é possível. Pelo menos nos quatro dias de festa.
De acordo com o professor de Design de Moda da UFMG, Tarcísio D’Almeida, estas fantasias clássicas fazem referência ao teatro italiano do século XVI, quando o ato de se mascarar passou a ser mais difundido. Mascarando-se, o folião podia suspender sua realidade e ser outras pessoas.
Marcelo, que já foi personagem do anime japonês “Sailor Moon”, bruxa do seriado “American Horror Story” e até “Cisne Negro” em anos anteriores, vê nas personagens femininas uma oportunidade de extravasar tudo aquilo que as convenções sociais e a rotina reprimem ao longo do ano.
“Fantasia pra mim é uma forma de brincar, de expor um personagem e de me expressar, sempre fui meio performático”, comenta ele que, durante a festa de Momo, junta os amigos, se enche de brilho e esquece da sala de aula e dos cálculos.
Já Ethel Braga, 25, mesmo acostumada a viver realidades diferentes por conta da sua profissão de atriz, vê na situação festiva muito mais possibilidades. “ Você fica livre para se jogar, dançar, brincar, interpretar e rir mais, rir de você, rir das fantasias dos outros, rir de tudo! Bom mesmo seria se fantasiar todo dia”, declara ela, que também é fotógrafa e, no ano passado, chegou a ter tantas peças que a permitiu ajudar a fantasiar 13 amigos de uma só vez. Algumas fantasias são mais elaboradas e ela começa a pensá-las no ano anterior.
Inversões
De acordo com a psicanalista Izabel Haddad, incorporar um personagem distante do cotidiano é uma forma de viver afetivamente aquilo que de outra maneira não se viveria. “Por isso, a famosa tese de que no Carnaval há um estado de exceção, que leva os foliões a se comportarem de uma forma catártica e excessiva. Ou seja, não é por acaso que atrás de uma fantasia ou de uma máscara o sujeito tem coragem de agir de uma forma que não teria de ‘cara limpa’”, comenta.
Essa associação entre liberdade e Carnaval se dá, segundo a professora de Ciências Sociais da UFMG, Ana Lúcia Modesto, desde a Idade Média, quando se celebrava o fim do inverno e inaugurava-se o período fértil para o plantio. Assim como a festa indicava o limite entre dois tempos, o comportamento dos foliões também atingia limites antes censurados, sendo permitidos então a sátira, o deboche, a esbórnia.
É por meio dessas expressões que ironizam e causam risadas que muitas questões vigentes na sociedade também são traduzidas e expressas pelas fantasias. Quantas máscaras do Lula, turbantes tipo Bin Laden e dinheiros na cueca não foram vistos em outros Carnavais? “Fantasiar-se é uma forma de discutir, de debater as coisas. No ato de brincar com a indumentária, com o figurino, com a maquiagem há uma narrativa de debate e reflexão social. Há muita coisa sendo jogada e discutida o tempo todo no Carnaval”, comenta o antropólogo folião Rafael Barros, que arrisca a falta d’água como uma das possíveis queridinhas dos blocos.
Questionar com bom-humor também inclui ser uma Drag Queen, como no caso de Marcelo, ou ser uma integrante bem devassa da família real portuguesa. Com garrafas pet na cabeça para armar o penteado, mangas bufantes, laços por toda parte, decotes, saias curtas e muito pó de arroz, Ethel e seus companheiros do bloco Corte Devassa, que sai toda segunda de Carnaval na rua Sapucaí, no Floresta, recriam e ridicularizam o momento em que a realeza se deparava com o calor e a festa de um país tropical.
Já na pele de “Rosie, the Riveter” (em português “Rosie, a Rebitadeira”), figura representante das norte-americanas que trabalharam durante a Segunda Guerra Mundial, ou na pele de uma motoqueira do Village People, grupo disco conhecido pelas coreografias efeminadas e voluptuosas, a redatora Luiza Sá, 28, também tem nas fantasias uma forma de confrontar valores e imaginar um mundo sem amarras. “É uma oportunidade de mostrar um lado da minha personalidade que não tem o menor compromisso de ser socialmente aceito”. Ou, é como ela gostaria que você aceito, afinal, como uma vez escreveu Aldir Blanc e cantou João Bosco, fantasia mesmo “é um troço que o cara tira no Carnaval e usa nos outros dias por toda a vida...”
Todos montados
“Fica Wando” era o nome da indumentária que rendeu a Mariana Maioline, 30, um lugar no panteão dos mais criativos no primeiro concurso de fantasias do Baile de Marchinhas Mestre Jonas, em 2012, quando recorreu ao famoso quartinho de cacarecos da sua casa e logo se transformou em um varal de calcinhas.
Como porta-bandeira em reverência ao arquiteto Niemeyer e como bolsa-família de grife, a atriz subiu ao pódio nos outros dois anos de existência do concurso. Na quarta edição, que acontece na próxima sexta-feira (13) na avenida Brasil, ela ainda não tem certeza se vai participar. De qualquer forma, Mariana gosta mesmo é do improviso.
Foliã de Belo Horizonte desde o início do resgate da festa de rua, lá nos idos de 2009, a atriz sempre curtiu festas a caráter e nunca teve fantasia pronta no guarda-roupa. O tal quartinho é sempre a fonte de inspiração e sua maior solução. “É uma alegria ficar inventando moda, colocar uma coisa na cabeça, fazer uma maquiagem, pegar um cacareco”, declara ela, que é uma das principais fornecedoras de adereços carnavalescos para os amigos pularem nos blocos.
Faça você mesmo
Também adepto do “faça você mesmo”, o designer gráfico Leonardo Lima, 31, é um pouco mais preocupado com a confecção e chega a importar adereços, mais baratos lá fora. Para este ano, a peruca de personagem de anime encomendada da China já está a postos e um amigo costureiro está dando uma mãozinha na confecção dos trajes. “Estou muito ansioso pra usar uma fantasia baseada no Ney Matogrosso, da época da banda Secos e Molhados. É uma roupa toda de franjas brancas, nos braços e na cintura, com colares, a maquiagem e um turbante”, conta.
O folião começa a pensar nas fantasias mais ou menos seis meses antes da festa, afinal, os itens importados podem demorar até quatro meses para chegar. Mas a ideia é procurar materiais mais acessíveis e enriquecer o visual com o que encontrar em casa mesmo.
Aliás, é isso que a figurinista Lira Ribas faz para desfilar em blocos como o Corte Devassa e o Magnólia, um cortejo de jazz à la Nova Orleans que sai na terça de Carnaval no bairro Caiçara. Acostumada a planejar e dar forma a figurinos bem elaborados no teatro, ela prefere lidar com o improviso e a espontaneidade na rua.
“Para mim, Carnaval é brincar com essas coisas, pegar fantasia usada, reaproveitar. Em brechós de bairros mais tradicionais como Santa Tereza e Padre Eustáquio é possível encontrar roupas baratas, diferentes, fantasias antigas...”, aconselha Lira. Para ela, touca de banho, óculos de natação e galochas velhas já são suficientes para se transformar em uma super-heroína.
Esse aspecto é, inclusive, o que difere uma fantasia de um figurino, explica o professor do curso de Design de Moda da UFMG, Tarcisio D’Almeida. Segundo ele, embora ambos os termos operem uma suspensão da realidade no sentido em que se incorpora outros personagens, o figurino é criado obrigatoriamente para expressões cênicas e artísticas, enquanto a fantasia de rua carrega em si o próprio sentido carnavalesco do tosco e do escárnio.
Algo que a estudante de arquitetura e bailarina Branca Vasconcelos, 23, leva bem a sério. Referência para os amigos no quesito empolgação, ela faz da feitura da fantasia um processo igualmente divertido. “Ano passado, fui de salada de fruta com mais duas amigas e eu era a melancia. Meu pai que fez meu capacete com a fruta! Ele escolheu a melancia com o melhor formato pra minha cabeça, tirou o recheio, deixou secando e cortou”, lembra ela, entre risos.