O que você faria se um amigo propusesse que você, em vez de comprar, fosse buscar alimentos na lixeira de um supermercado? A primeira reação da estudante Maria Luiza Castro Pereira, 22, foi de repulsa. “Achei que meu amigo tivesse me chamado para a xepa, mas quando chegamos ele pulou no lixo. Na mesma hora disse que não comeria aquilo de jeito nenhum, que não fazia sentido”, conta a jovem, que viveu a experiência há algumas semanas em Melbourne, na Austrália, onde faz intercâmbio.
Porém, o amigo explicou que fazia aquilo com frequência, que outras pessoas também faziam e que a prática tinha nome: “dumpster diving” – o ato de buscar coisas úteis “mergulhando” no lixo. “Eu comecei a prestar atenção e vi que muita coisa ali estava em bom estado, inclusive itens que eu nem costumava comprar porque são caros, como morango”, diz Maria Luiza.
Naquele momento, ela teve a comprovação clara de um dado que até já conhecia, mas nunca a havia mobilizado: o do alto volume de alimentos que é desperdiçado no mundo, diariamente. Com o despertar dessa consciência, a estudante sentiu necessidade de fazer o mesmo por outras pessoas e, junto com as amigas Bruna Ribeiro, 26, e Mariana Celnik, 22, criou o projeto Virando Latas (leia mais na pág. 4). Com isso, se juntaram a uma série de iniciativas que, no Brasil e no mundo, se ocupam de transformar a mentalidade das pessoas e combater o desperdício.
Em artigo publicado no site da ONU, Achim Steiner, diretor executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), apresentou alguns números alarmantes. De acordo com ele, um terço de todos os alimentos produzidos no mundo a cada ano, ou cerca de 300 milhões de toneladas, é jogado no lixo, resultando num prejuízo de 1 trilhão de dólares ao ano na economia mundial. “A comida que jogamos fora ainda serve para o consumo humano e poderia alimentar mais de 800 milhões de pessoas no mundo”, disse.
Também foi de um confronto com essa realidade que nasceu o projeto Geid Alimenta, coordenado pelo engenheiro de sistemas Marcelo Ramasine, 43, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Ao ver a quantidade de alimentos próprios para o consumo que eram descartados num hortifrúti que frequenta, fez um acordo com a gerência para dar a eles um destino mais proveitoso. Hoje, quase um ano depois dessa ideia, ele, junto com uma equipe de quase 120 voluntários, são responsáveis por servir, gratuitamente, de cem a 150 refeições a famílias e instituições de vulnerabilidade social, toda quinta-feira.
“Nós fazemos a coleta, que gira em torno de 1 tonelada por semana, selecionamos, higienizamos, lavamos, beneficiamos e transformamos numa série de pratos, como sopas, tortas, bolos, pizzas. Não escolhemos nada do que recebemos, aceitamos tudo. Por isso, o cardápio é definido no dia” explica. Parte da produção é direcionada à venda, para ajudar na manutenção do projeto e as sobras são enviadas a caixas de compostagem, e geram adubo para as hortas que também cultivam, de modo a aproveitar 100% do que é recebido.
Consequências
As histórias de transformação por meio do Geid Alimenta – que já recebeu convites para ser estendido a Belo Horizonte e Manaus – vão se acumulando ao longo das semanas. Entre as mais marcantes, Marcelo se lembra de uma senhora que foi até eles já sem conseguir falar, de tanta fome. “Ela aparentava ter por volta de 70 anos e me procurou bem fragilizada, quase desmaiando. Eu pedi que trouxessem um pouco de sopa e fui a alimentando. Aos poucos, ela se recuperou, me abraçou e contou que não comia há quatro dias. Hoje, ela conseguiu se reestruturar e é uma de nossas cozinheiras”, conta.
Mais que matar a fome, o combate ao desperdício é também uma maneira de preservar o meio-ambiente. Afinal, junto com o alimento jogado fora é descartada também toda cadeia de trabalho envolvida em sua produção, como explica a coordenadora de nutrição da ONG Banco de Alimentos, de São Paulo, Camila Kneip. “Para que o alimento chegue ao consumidor final, foram utilizados diversos recursos: água, solo, mão de obra, energia elétrica, emissão de poluição. Então, quando se joga fora algo que poderia ser comido, vai tudo junto. Inclusive, quando quem joga fora é o comprador, vão também o próprio tempo e dinheiro investidos por ele”, afirma. “Sem contar que o descarte do lixo orgânico também é poluente, uma vez que libera gás metano, CO2 e chorume”.
Se o quadro não for mudado, em breve enfrentaremos grandes problemas. “Nosso sistema global de alimentos é responsável por 80% do desmatamento e é a principal causa da perda de espécies e de biodiversidade”, alertou o diretor executivo do Pnuma. “O nosso consumo global (de alimentos) já é 1,5 maior que a capacidade da Terra de aguentar. Se a população e as tendências de consumo continuarem a crescer, a humanidade precisará do equivalente a dois planetas Terra para sustentar-se em 2030”.
Em BH
Belo Horizonte conta com um Banco de Alimentos, ligado à Secretaria Municipal Adjunta de Segurança Alimentar e Nutricional. Por meio de parcerias com estabelecimentos comerciais registrados, o órgão, que fica no bairro Padre Eustáquio, região Noroeste da capital, recebe doações, faz uma triagem, acondiciona, processa, embala e distribui para instituições filantrópicas. “Do início de 2016 até hoje, foram cerca de 64 toneladas de gêneros alimentícios. Beneficiamos em torno de 4.000 pessoas de 40 instituições”, diz o secretário Municipal Adjunto de Segurança Alimentar e Nutricional, Marcelo Lana Franco.
Numa outra linha de atuação, o Banco de Alimentos também promove o Circuito de Educação Alimentar e Nutricional, em que recebe alunos da rede municipal para oficinas, rodas de conversa e atividades de formação para a promoção do consumo sustentável e redução do desperdício.
Dicas para evitar o desperdício
Estoque
Realize uma parada obrigatória na despensa e na geladeira antes de ir ao mercado fazer compras. Verifique quais produtos você realmente precisa comprar e evite fazer estoques;
Validade
Na hora de cozinhar, dê preferência aos produtos que estão próximos do vencimento da validade. Anote quais são eles em uma lista e cole na geladeira para não esquecer;
Pouco a pouco
Em vez de fazer uma compra por mês, experimente ir ao mercado mais vezes e comprar menos produtos;
Vilão
As promoções costumam ser irresistíveis, no entanto, são as grandes vilãs do consumo consciente porque nos estimulam a comprar um número alto de produtos, que acabam se estragando. Fique atento;
Conservação
Antes de guardar frutas, verduras e legumes na geladeira, higienize-os e seque-os. Depois de consumir, guarde esses alimentos em embalagens hermeticamente fechadas para evitar a proliferação de bactérias;
Em falta
Planeje suas compras. Faça uma lista com os produtos que realmente estão em falta;
Cascas
Literalmente, aproveite seus alimentos até o talo. É possível reaproveitar partes não convencionais, como as sobras e cascas das frutas, por exemplo;
Até o caroço
Se uma fruta ou legume apresentar uma aparência feia em algumas partes, corte-as e use o que sobrou, sem a necessidade de jogar tudo fora.
Nosso desperdício diário
O “mergulho” na lixeira de mercado repleta de alimentos em bom estado para consumo não resultou apenas num jantar farto para a estudante Maria Luiza Castro Pereira, 22. Aquilo ficou martelando em sua cabeça durante um tempo, e então ela decidiu que precisava transmitir o que havia assimilado a outras pessoas. Ao idealizar o projeto Virando Latas, a primeira ação que propôs, com o apoio das amigas Bruna Ribeiro, 26, e Mariana Celnik, 22, foi passar 30 dias preparando suas refeições somente com o que encontrasse nas lixeiras de um hortifrúti.
Outras iniciativas pelo mundo