Depois de o divórcio ter levado a boxer que dividia o apartamento com o casal, Francisco Ferreira, 32, sentiu uma necessidade enorme de ter outro pet. O administrador de empresas não tinha muitos critérios para a escolha do novo companheiro, mas sabia que preferia um animal mais velho, de porte relativamente grande e, sobretudo, que fosse adotado. Ele só não sabia, até então, que a adoção que o aguardava é considerada “especial”.
Pedrita, como foi apelidada a pit bull de 11 anos, não tem uma orelha, possui um tumor nas glândulas adrenais e tem uma certa aversão ao contato com outros animais. “Descrição assim até poderia afastar alguém que estivesse em busca de um bicho para o lar, mas foi o que nos aproximou. Logo que a vi, senti que queria ser útil e dar qualidade e dignidade aos últimos anos de vida dela”, comenta Francisco, que completa neste sábado (27) dois anos ao lado de sua amiga peluda.
A iniciativa do administrador de empresas é rara. Segundo dirigentes de ONGs ligadas à defesa de cães e gatos, o preconceito e o temor de trabalho em excesso com o animal especial rondam os candidatos que se dispõem a adotar um bichinho de estimação. Mas a experiência do administrador e de tantos outros tutores que optaram por esse tipo de adoção mostra que, na maior parte dos casos, esse receio não tem muita razão de ser. Além do mais, os relatos apontam que a convivência com a limitação dos pets os levaram a se tornar pessoas melhores, mais pacientes.
São chamados “animais especiais” aqueles com problemas físicos e neurológicos, mas não somente. Idosos também entram na classificação por demandarem cuidados mais detalhados, e os animais da cor preta, por serem menos procurados em relação aos de pelo claro. De forma geral, são os bichos de estimação que menos despertam o interesse de possíveis adotantes e que, conforme Denise Menin, diretora administrativa da ONG CãoViver, de proteção animal, acabam “mofando” nos abrigos.
Segundo estimativa da campanha “#AdoteUmPetComDeficiência”, de São Paulo, em eventos de adoção, por exemplo, a rejeição aos especiais chega a 99%. Em Belo Horizonte, não existem dados do tipo, mas iniciativas como o programa “Adote Um Amigo” contabilizam cerca de cinco pets idosos ou com deficiência adotados num universo de 1.700 adoções “comuns” (veja mais na página 4).
“As pessoas ainda têm preconceito. Acreditam que esses bichinhos com alguma característica diferente dão mais trabalho e não vão oferecer a mesma alegria que os outros oferecem. Não tem nada mais equivocado que isso”, destaca Denise.
Adaptáveis
Acostumada a cuidar de gatos desde a infância, a empresária Giovanna Palmieri, 21, não percebe muita diferença no trato entre eles e a gata Safira, cega, que adotou há quatro anos. Tomar cuidado ao acariciá-la e não mudar com frequência a disposição dos móveis da casa, no entanto, são algumas das precauções que aprendeu a incluir no cotidiano.
“Como não enxerga, ela se assusta muito se chegamos por trás para tocá-la. Isso eu já aviso a qualquer um que venha nos visitar. Agora, como a gata se adapta a um certo tipo de ambiente, trocar tudo de lugar com frequência pode deixá-la estressada. Por conta da Safira, me tornei mais paciente e respeitosa”, conta ela, que também adotou, há duas semana, o Bakunin, cão sem uma pata traseira e sem um dos olhos por ter sido espancado.
Para Fernando Bretas, professor da Escola de Veterinária da UFMG, além desses cuidados, é importante evitar a presença de piscinas, buracos e escadas no caso da adoção de animais cegos. “Falamos nessas precauções simples, mas é importante destacar que os animais se adaptam muito mais que nós a determinadas situações. Já tratei casos em que o tutor não fazia nem ideia de que o animal era cego. Assim como os que não possuem uma das patas, saltam, correm e se divertem como qualquer outro”, destaca ele, chamando a atenção apenas para o tipo de piso em que o animal anda. Afinal, a aspereza pode ferir a pele sensível da pata amputada.
O que não cabe mais é, conforme o professor, acreditar que qualquer deficiência no animal é sinônimo de sofrimento e que ele, por isso, deve ser sacrificado. “Há, sim, esses casos críticos e terminais em que a atitude faz sentido, mas tais casos estão longe de ser maioria”.
Alexandra Moraes, 41, servidora federal e idealizadora do projeto Miaui, por exemplo, chegou a ser desacreditada quanto à condição da gata Mariana, resgatada após um atropelamento há quatro anos. Hoje, com insuficiência renal e uma pata dianteira inutilizada, Mariana leva uma vida comum. A única diferença é que a gata demanda exames periódicos de sangue e urina e uma “ração renal”.
Incondicional
“Me incomoda quando as pessoas comentam ‘nossa, tão linda, mas aleijada!’. Não tem esse ‘mas’, ela é linda do jeito que é e muito feliz, é a líder de todos nossos bichinhos”, enfatiza Alexandra, que também cria Aninha, uma gata surda.
Para ela, o maior prazer de ter as felinas como companhia é aprender diariamente sobre superação. “Bicho não se vitimiza. Eles contornam suas dificuldades com facilidade e não ficam pensando que são piores ou melhores. Eles apenas querem viver. Aprendo muito com eles”, afirma.
Francisco, o tutor da Pedrita, concorda. “Ela me ama do jeito que sou, por que não fazer isso por ela?”.
Gatinha faz sucesso no face
FOTO: Arquivo Pessoal |
Esperança foi jogada com seus quatro filhotes em uma caiza d' água após morte de seu tutor e foi resgatada |
Tutora de uma gata sem as duas patas dianteiras e sem uma orelha, Renata Raffaele, 36, encontrou nas redes sociais um espaço favorável para combater o preconceito existente com relação aos animais especiais. No grupo “Esperança! – A Gatinha Mais que Feliz!!!!”, do Facebook, a bancária divulga as peripécias cotidianas de sua felina de estimação e, com isso, mostra que ela não perde em nada no quesito qualidade de vida em comparação aos outros pets.
Entre brasileiros e apaixonados por bichos oriundos de vários países do mundo, o grupo já conta com quase 5.000 membros.
“A ideia surgiu quando, há um tempo, postei uma foto da Esperança em um grupo chamado ‘Tudo Sobre Gatos’ sem mencionar suas deficiências. Algumas pessoas perceberam e começaram a me perguntar sobre seu dia a dia. Foi um sucesso e as pessoas sugeriram que eu criasse um grupo só dela”, comenta Renata, enfatizando que o preconceito das pessoas é fruto do desconhecimento acerca da realidade dos animais.
Um olhar para o diferente
Belinha foi retirada da rua com uma pata fraturada em estado grave que, dias depois, precisou ser amputada. Resgatada pela equipe do programa “Adote um Amigo”, que realiza feiras semanais de adoção na capital, Belinha já foi e voltou para o abrigo várias vezes por falta de interesse de quem a levasse para casa. “Por casos como esse é que passamos a não levar os animais considerados especiais para os eventos de sábado. É desgastante para eles esse trajeto”, conta Leonardo Veloso, veterinário do projeto. Segundo ele, uma conversa sobre a existência de animais com deficiência e idosos ávidos por ganharem um novo lar é sempre levada a cabo com quem visita as feiras.