Três quartos, sala, banheiro, área e a garagem que cabia um carro e duas motos, caso apertasse um pouco. A casa de Rodrigo Barbosa dos Santos, 23, que dividia o teto com a mãe, ficava entre o lar do tio, do lado direito, e o da prima, do esquerdo. Perto do rio, mais para frente, ainda moravam a tia e outro primo. “Naquela rua era só parente, a gente estava sempre ali, junto. Mas acabou tudo, né?”. O soldador se refere à destruição de Bento Rodrigues, distrito de Mariana, na região central de Minas. Atingido pelo rompimento da barragem Fundão, mantida pela Samarco, mineradora controlada pela Vale a pela australiana BHP Billiton, o povoado tinha aproximadamente 600 habitantes. No último dia 5, por volta das três da tarde, uma avalanche de lama contendo rejeitos do beneficiamento de minério de ferro devastou praticamente 90% das construções do local, matando 11 pessoas e deixando 12 na condição de desaparecidas até o momento.
Abrigado em um hotel junto com a família desde o dia seguinte ao ocorrido, Rodrigo não quer saber muito de Mariana e da vida na cidade. Menos de um mês após este que já é considerado o maior desastre ambiental do país, ele fala na construção de um “novo Bento”. Enlutado pelo que não conseguiu salvar quando a lama se aproximava, inclusive a casa nova que havia comprado na véspera da tragédia e que tinha “um quintal bem maior que o da minha mãe”, ele espera permanecerem, no novo espaço, pelo menos as relações de amizade e o clima familiar do interior. Afinal, Rodrigo sabe que parte do que constituía cada um ali foi embora junto com sua terra natal, irrecuperável.
Nesse sentido, mensurar os reais danos da tragédia e apontar e punir seus responsáveis é fundamental, mas pensar a fundo o futuro das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, o outro vilarejo praticamente dizimado pelo tsunami de lama, também é imprescindível, dizem especialistas em meio ambiente.
Missão que ultrapassa, em muito, as questões materiais, o reassentamento das famílias depende de muito diálogo e atenção a detalhes, muitas vezes ínfimos, a respeito de seu modo de vida para que o desenraizamento venha a ter suas consequências reduzidas e para que a falta de referências culturais não afete tanto cada indivíduo.
“A partilha do mesmo ambiente com parentes distantes ou já falecidos, o trabalho na terra, o levantamento das casas e o trato com animais, tudo o que ali se fez ao longo de muitas vidas e gerações imanta o lugar de um significado intraduzível, uma espécie de experiência única que funciona como uma bússola interna de homens, mulheres e crianças”, comenta Gustavo Ribeiro, professor da Faculdade de Letras da UFMG e pesquisador do exílio e da memória. Segundo ele, perder a referência da terra de origem é perder um pouco da segurança para atuar no mundo.
No Brasil, não faltam relatos, apontados em estudos e pesquisas, de experiências maléficas envolvendo o reassentamento de comunidades inteiras. Muitas vezes, as intenções são até as melhores, mas a falta de comunicação e o não respeito às peculiaridades dos grupos podem resultar em frustrações.
Klemens Laschefski, professor do Instituto de Geociências da UFMG e pesquisador do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), comenta um caso curioso. Durante a realocação de uma comunidade mineira, uma empresa, em nome do conforto e do desenvolvimento, construiu casas com banheiros. Mas os novos moradores não tinham esse hábito e consideravam inconcebível fazer suas necessidades no mesmo ambiente em que se come. As casas se tornaram impraticáveis. “É preciso entender que existem outros modos de vida e abordar o problema de forma socioambiental, pensando a cultura como intrínsecamente ligada à terra”, aponta Laschefski. Segundo ele, as avaliações sobre as comunidades costumam quantificar as televisões, os carros, mas, o que realmente se perde é incomensurável.
Igualzinho
Ainda não se sabe quando nem para onde as famílias atingidas pelo rompimento da barragem em Mariana serão realocadas. Mas se depender de José do Nascimento de Jesus, 70, natural de São João del-Rei, no Campo das Vertentes, e morador de Bento Rodrigues há 33 anos, já se sabe como. Ele matuta a forma como quer que o “novo Bento” seja. “Do jeitinho que sempre foi, com o mesmo nome, o mesmo padroeiro. Com as casas na mesma disposição, os mesmos vizinhos. A pracinha que a gente se reunia no domingo”. Presidente da associação de moradores, Zezinho do Bento, como é conhecido, se vangloria de ter seu dedo em cada uma das grandes conquistas do distrito – “a pavimentação das ruas, o campo alambrado, o ginásio coberto…”. Dono de “uma das melhores casas de lá”, “arrumadinha, como pé de mexerica”, a 50 m da igreja de São Bento, ele teme, no entanto, que nada se pareça como antes.
Infelizmente, a preocupação de Zezinho faz sentido. Conforme Gilberto Cervinski, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), não existem dados generalizantes sobre o impacto dos reassentamentos de comunidades no país, mas, segundo ele, acompanhamentos feitos ao longo dos anos permitem dizer que há mais exemplos negativos do que positivos. “Em muitos casos de transposição, as famílias perdem seu meio de subsistência, suas terras, a proximidade com algum rio... O que pode fazer com que elas fiquem dependentes de outros mercados e atividades a que não estavam acostumados e, assim, aumente o índice de pobreza entre os moradores. Fora a depressão de se separar do lar. Há casos até de suicídio”, diz Cervinski.
Ele cita os ribeirinhos atingidos pela barragem de Acauã, na Paraíba. Devido à construção de uma usina hidrelétrica, eles foram retirados da região úmida e levados para agrovilas no semiárido. “A mudança deve ter uns 15 anos e até hoje a comunidade está sem terra, sem água, sem escola”, comenta.
Em um Estado como Minas Gerais, com ao menos 35 barragens de resíduos sem segurança adequada, como alerta um levantamento da Fundação Estadual do Meio Ambiente, casos parecidos acontecem, segundo Cervinski, muito porque a forma escolhida para reparar as famílias é responsabilidade da empresa, não existindo um padrão ou uma regulação firmada. “Muitas optam pelas alternativas mais baratas, em detrimento do futuro das comunidades”.
O reassentamento da Usina de Itá, no sul de Santa Catarina, é, para o coordenador do MAB, um exemplo positivo, considerando toda a dificuldade que é a mudança da terra originária. “Tratava-se de uma comunidade de camponeses, então, forneceram a infraestrutura rural que eles precisavam. Os indicadores mostram que não houve êxodo por lá. Reassentar não é oferecer o mesmo cotidiano de antes, mas, pelo menos, as pessoas deveriam sair em uma situação melhor”.
E “melhor”, aqui, não remete apenas a bens materiais. Maria Irene de Deus, 76, ex-proprietária de uma lojinha de artesanato no Bento, por ora, prefere não pensar em nada que envolva o distrito, na vida que tinha, nem na vida que quer daqui pra frente. Só sabe que é preciso reconstruir as igrejas de Nossa Senhora das Mercês e de São Bento, uma em cima e outra embaixo no terreno, como retribuição. “Só a Nossa Senhora das Mercês se safou, lá no alto, com os braços abertos assim ó. Temos falado que quando a lama começou a chegar, ela que socorreu a gente. São Bento, lá de baixo, deve ter falado com Nossa Senhora: ‘toma aí, salva eles!’”.
Inventário de memórias
Daiane Maria Ferreira, 22, só teve cinco minutos para deixar sua casa, quando um helicóptero aterrissou em Paracatu de Baixo informando sobre o rompimento das barragens da Samarco/Vale/BHP. Como a construção ficava na entrada do distrito, foi toda tomada pela lama. Ela só teve tempo de pegar uma bolsa com documentos mas, dentre todas as perdas, o emprego é algo pelo qual mais lamenta. Com culturas de couve, alface, beterraba, cenoura e, sobretudo, repolho, a horta onde Daiane trabalhava havia três meses não foi destruída. No entanto, sem a possibilidade de voltar ao povoado, ela não tem mais como continuar labutando.