Reportagem

Minha casa, minha vida

“Geração bocejo - Jovens abdicam da badalação em favor de hábitos caseiros

Por Jessica Almeida
Publicado em 27 de junho de 2015 | 03:00
 
 
 
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Das professoras de pole dance do estúdio em que dá aulas, a (também) estudante universitária Anna Victoria Urbieta, 24, foi quem ficou responsável pelas turmas de sábado de manhã. O motivo é simples: ao contrário da maioria das pessoas de sua faixa etária, que mal podem esperar a chegada da sexta-feira para se acabar nas baladas do fim de semana, a jovem, em geral, fica em casa.

Ao invés dos agitos, prefere comprar algo gostoso para comer, assistir a um filme ou uma série no serviço de TV sob demanda Netflix e aproveitar sossegada a companhia de seus gatos. Um desavisado até poderia achar contraditória sua escolha de morar no bairro Santa Tereza, reduto boêmio da cidade, mas foi justamente a sua característica oposta – a diurna – o que a atraiu para lá. “Aqui tem cara de interior, é bem tranquilo. Não tem aquele ‘climão’ de cidade”, justifica.

Anna faz parte do que o jornal britânico “The Telegraph” chamou de “geração bocejo”. Em artigo escrito por uma representante desse grupo, a publicação afirma que “os 20 anos são os novos 40” e, amparada por dados como a redução do consumo de álcool e outras drogas entre jovens britânicos, sua maior propensão a obedecer às leis, ser menos barulhentos em locais públicos e se dedicar a trabalhos voluntários, dá a entender que o trinômio sexo, drogas e rock’n’roll estaria perdendo força entre os jovens, em detrimento de hábitos e hobbies mais caseiros e sadios.

Como demonstram as poucas referências encontradas sobre o assunto na internet, esse ainda é um fenômeno incipiente. De toda forma, a psicóloga e psicanalista Suzana Braga afirma de fato enxergar esse perfil em alguns dos jovens que atende. “Não é uma coisa homogênea, eles são mais a exceção do que a regra, mas é interessante observar que, na história da humanidade, as coisas não andam numa única direção. Há sempre uma maioria caminhando para um lado e minorias tensionando para outros. Porém, essa minoria faz uma diferença, até porque pode apontar um comportamento que pode começar com poucos representantes, mas se tornar majoritário no futuro”, analisa.

O que ela observa de diferente em relação ao passado nessa safra de gente nova que é mais, digamos, pacata, é que hoje existe lugar para isso. “Pelo menos dentro de determinados grupos, eles podem partilhar esse tipo de valor e criar uma identidade diferente. Não estão mais sozinhos”, diz.

Sem obrigação social

É esse o caso de Anna, cujos amigos mais próximos são como ela. “A gente se reúne muito na casa um do outro, ou em sítios. Ficamos conversando, jogando, somos bem tranquilos”, conta. A estranheza só aparece em quem não a conhece tão bem. Muita gente não consegue entender como ela, que é solteira, prefere ficar em casa a “ir pra pista”. “É uma obrigação social, cobram muito, especialmente de mulheres. Mas eu estou feliz vendo filme, lendo, estudando ou arrumando a casa. Fazendo o que quero, na hora que quero e com quem eu quero”, diz.

Introvertida, a redatora Dafne Braga, 24, nunca gostou do ambiente das boates. “É música alta, gente me encostando, tudo fechado, acho asfixiante. O ‘rolê’ que eu mais gosto é sair para comer ou cozinhar na casa de amigos”, explica. Foi o que ela fez no último sábado, quando foi até a casa de uma amiga e cozinharam, jogaram Uno (um jogo de cartas), tomaram vinho e sorvete. Mesmo esse tipo de programa, ela conta que é exceção. “Eu encontro pouco meus amigos. Durante a semana já tenho que lidar com tanta gente que no fim de semana me dou esse tempo para ficar sozinha”, diz.

Seu perfil no Instagram é repleto de imagens que remetem às atividades a que prefere se dedicar: experiências culinárias, jardinagem, leituras, cuidados com saúde e estética, chás, tricô e ponto cruz. Além de negar o trio ‘sexo, drogas e rock’n’roll’, uma das marcas dessa geração é se aproximar de práticas consideradas dos tempos de seus avós.

Feminista, Dafne explica que não há contradição no seu envolvimento com essas atividades. “Eu não faço nada por imposição, não aprendi para atender um padrão de feminilidade ou agradar um marido. Aprendi porque precisava de um hobby e é algo que me relaxa, me faz bem. É muito bom para explorar a criatividade”.

As peças que faz em ponto cruz têm referências à cultura pop e ao próprio feminismo, e ela as faz tanto para si mesma quanto para presentear amigos. “Quando faço para alguém, faço pensando na pessoa, no que ela gosta, ponho sentimento no trabalho. É até um pouco cafona dizer isso, mas sinto que estou colocando amor em cada ponto”, declara.

‘Transgressões limpas’

Ao se deparar com o texto do “Telegraph”, a escritora gaúcha Carol Bensimon, 32, sentiu identificação e decidiu falar sobre o assunto em sua coluna no jornal “Zero Hora”. No texto, ela elabora o conceito de “transgressões limpas”, que teriam menos a ver com rasgar os próprios jeans e xingar os pais do que com separar o lixo, usar bicicleta ou ônibus e ajudar a financiar o álbum de uma banda independente.

“Hoje, quando surge uma transgressão nos moldes do ‘sexo, drogas e rock’n’roll’, que a matéria cita como contraponto, é tudo muito rapidamente incorporado pelo mercado e perde-se o caráter rebelde. O que eu pensei é que houve uma migração dessa rebeldia para o plano social, no rumo oposto ao da maioria, como o cicloativismo ou o veganismo, que têm um caráter mais coletivo”, explica.

Como os nossos avós

Costurar, bordar, tricotar. Esses são alguns dos hobbies da chamada geração bocejo. A procura por esse tipo de aprendizado vem, aos poucos crescendo. Tanto é que foi por demanda de amigas de sua filha, que tem 27 anos, que a modista Cida Pena, 67, decidiu criar um curso de costura. Desde o início do ano, ela tem duas turmas com moças jovens para quem ensina a “fazer as próprias roupas ou apenas pregar um botãozinho” e agora está abrindo novos horários.

Foi procurada inclusive por rapazes, que devem entrar em futuras turmas. Também houve interesse por cursos de bordado. “Elas (as atuais alunas) já ouviram falar e estão comprovando que costurar é uma coisa gostosa de se fazer e que te descansa. Principalmente elas, que são tão atarefadas”, diz.

Além das lições teóricas e práticas, Cida oferece também “chás caseiros, bolos quentinhos e muita tranquilidade”, conta. “Assim, os alunos podem aprender não só a fazer as próprias roupas, com um melhor caimento, mas também ter um tempinho para relaxar”.

Como a própria modista sugeriu, a psicóloga e psicanalista Suzana Braga confirma que essa é uma forma que os jovens têm para lidar com as responsabilidades da vida adulta. “A geração Y (nascidos entre 1980 e 2000) é um grupo marcado pela dificuldade de lidar com as pressões do mundo adulto. Essas atividades funcionam como válvulas de escape, uma forma de se posicionar contra um modo de organização social predominante”, comenta.

A internet torna as coisas mais fáceis

Não fosse a internet, talvez a redatora Dafne Braga, 24, cedesse um pouco menos aos impulsos da sua introspectividade, mas, como ela mesma conta, são muitos os seus amigos com quem mantém contato diário sem a necessidade de se encontrar pessoalmente. “Meus amigos mais antigos já se acostumaram com o meu jeito, mas de toda forma estamos sempre nos falando pelo Facebook, Twitter, WhatsApp”.

É preciso, portanto, pensar melhor na ideia de isolamento no contexto contemporâneo, como adverte o professor do departamento de comunicação da UFMG e pesquisador do Centro de Convergência de Novas Mídias Carlos D’Andréa. Não dá, de acordo com ele, para criar uma distinção entre mundo online e offline. “A sociabilidade se dá no encontro dessas duas coisas. Então, se a pessoa opta por não sair e prefere ficar em casa, muito provavelmente ela está interagindo com seus amigos e conhecidos por outros caminhos. Não dá para ler separadamente o virtual e o real”, ressalta.

Inclusive, é a própria internet que, muitas vezes, proporciona o encontro entre as pessoas que têm esse perfil e, mesmo quando não se tornam amigas, ao menos se reconhecem e se sentem representadas. “Hoje, nós temos acesso a todo tipo de gente ‘esquisita’, que na verdade é simplesmente fora do padrão. O que acontece, no fim das contas, é que a gente percebe que é ok ser diferente”, comenta a redatora Dafne Braga.

Legitimidade

Nesse sentido, os jovens brasileiros da geração bocejo têm dois representantes proeminentes: Lucas Consoli, 22, do perfil do Twitter @luscaspfvr, e Julia Tolezano, do canal do YouTube “Jout Jout Prazer”.

Ele, que tem quase 250 mil seguidores – entre eles até mesmo celebridades da mídia convencional como Regina Casé e Tatá Werneck – usa a rede com frequência para falar do quanto prefere ficar em casa assistindo a seriados da Netflix a sair para festas e baladas, chegando ao ponto de, no dia dos namorados, postar uma foto entregando um presente para sua TV.

Julia, por sua vez, tem um canal com mais de 185 mil inscritos e 16 milhões de visualizações, em que se propõe a falar do cotidiano de forma bem-humorada, fazendo a “destabulização” (termo que ela usa para se referir ao ato de tirar o tabu) de diversos temas, como masturbação feminina, coletor menstrual ou homossexualidade.

Em vários de seus vídeos, ela já deu a entender que é uma pessoa caseira e, assim como Lucas, troca fácil uma saída por uma cama e uma televisão. Mas no vídeo “Pecados da noite”, publicado há um mês, ela fala exclusivamente de como é incômodo quando seus amigos não entendem a preferência por ficar em casa ou mesmo a vontade de voltar cedo quando sai.

Seguidora de ambos, a advogada Jennyffer Santos, 23, explica porque faz questão de “retuitar” e compartilhar os vídeos em seus perfis. “Tenho amigos que não conseguem entender o fato de que eu, às vezes – muitas vezes –, prefiro ficar em casa a sair. Mas parece que quando pessoas que têm reconhecimento na internet pensam o mesmo que você, seu pensamento é legitimado”, comenta. “Então, eu sinto a necessidade de compartilhar essas coisas, para que as pessoas próximas a mim entendam o meu ponto de vista, vejam que eu não sou a única que nem sempre acha divertido sair e conhecer novas pessoas e que uma noite em casa pode ser bem mais interessante do que essas badalações”.

Faça você mesmo

Não bastassem esses dois aspectos, Dafne aponta um terceiro modo como a internet é uma ferramenta útil para quem quer ocupar seu tempo em casa. Além de ser fonte inesgotável de todo tipo de entretenimento, há tutoriais que ensinam como fazer praticamente qualquer coisa. “Eu não só aprendi a fazer ponto cruz – e com motivos das coisas que eu gosto – como aprendi novas técnicas de tricô, que eu já sabia. Acho que essa coisa de ter mais gente realizando trabalhos manuais tem a ver com o fato de que é tudo muito acessível hoje”, diz.

Geração bocejo com milhares de seguidores

@luscaspfvr - Veja, a seguir, alguns dos tweets – todos replicados centenas de vezes por seus seguidores – em que Lucas Consoli expõe sua preferência por ficar em casa (todos reproduzidos aqui exatamente como foram publicados):
“n vou em festas pra me divertir eu vou em festas pra comer qnd eu quero me divertir eu deito e durmo”; “só vou pra balada se colocarem meus seriado pra passar num telão”; “as vezes a vida nos obriga a tomar decisões difíceis como por ex assistir mais um episódio ou dormir”; “pra q sair de casa qnd existe netflix vc pode ver pessoas novas em filmes e seriados”. Para ler outros, acesse www.twitter.com/luscaspfvr
 
Jout Jout Prazer - Leia um trecho do que Julia Tolezano diz no vídeo “Pecados da noite”: “Às vezes, a pessoa prefere ficar em casa, relaxadinha, vendo uma seriezinha, um filminho, pan. Só é ‘cool’ quem fica até 6h da manhã fritando numa festa. Tem dia que eu não quero fritar numa festa. Você quer ir lá, dar uma dançadinha e ir pra casa. Aí você já ganha apelidos. Aí começam a falar mal de você e consideram não te chamar porque já sabem que você vai sair mais cedo. Qual é o problema de sair mais cedo?, eu te pergunto. Não há problema nisso”.Para ver o video completo e outros vídeos publicados por Julia, acesse: www.youtube.com/joutjoutprazer 

 

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