Pode parecer paradoxal, mas a zona Leste, esse pedaço mais à direita da capital mineira, tem mesmo vocação para ser “gauche na vida” (como diria o poeta Drummond). Sede de importantes grupos de teatro da cidade (o Galpão fica ali, no Horto), de produtoras de filmes, coletivos culturais, clubes e (bons) restaurantes, a região tem experimentado uma onda de rejuvenescimento nos últimos tempos. Formada por 51 bairros e cercada pelas avenidas Cristiano Machado, José Cândido da Silveira, Silviano Brandão, Nossa Senhora de Fátima e Contorno, a Leste está “fervendo”.
Se antes o famoso reduto boêmio da ZL era Santa Tereza, berço do Clube da Esquina, agora a lista ganha a adesão de bairros como Sagrada Família, Santa Efigênia, Horto, Alto Vera Cruz e Floresta. O aspecto bucólico talvez seja um dos componentes que atraiam os olhares dos belo-horizontinos para a região. “A zona Leste é uma região que tem uma dinâmica de rua e uma atmosfera interiorana”, afirma Roberto Andrés, 35, arquiteto, urbanista e editor da revista “Piseagrama”. Segundo ele, ao contrário da Savassi, que está elitizada, “na zona Leste é possível uma troca sem essa mediação carro/porteiro/condomínio. Em Santa Tereza, por exemplo, os moradores se comunicam e assumem para si as questões do seu próprio bairro, o que deve mesmo acontecer. Esse tratamento da cidade como uma extensão da própria casa”, completa.
Músico e um dos fundadores do Clube da Esquina, Marilton Borges, 73, se lembra dos primórdios do burburinho do local. “Minha família se mudou para Santa Tereza em 1940. Era vazio e muito mais barato. Ao longo dos anos, por causa da proximidade com o centro, foi se tornando a opção favorita de artistas e músicos”, conta.
Nascido e criado no Alto Vera Cruz, o rapper Flávio Renegado, 34, hoje volta a observar a mesma inversão do fluxo de movimentos na cidade vivenciada por Marilton décadas atrás. Figura central em sua comunidade, o rapper também faz sua análise. “No começo, apenas o pessoal da comunidade ia aos meus shows. Com o passar do tempo, passou a ser a galera da zona Sul. Atualmente, é possível perceber uma mistura total. Com o amadurecimento, meu som passou a falar pra mais gente. Estamos fazendo o movimento inverso, trazer a zona Sul para subir o morro”.
Frequentador do Bolão e do bar do Orlando (o Bar dos Pescadores, na rua Alvinópolis, em Santa Teresa), Renegado se sente a cara da zona Leste, mas evita tomar pra si esse rótulo. “Um líder não se autonomeia, as pessoas o proclamam. Desde que lancei meu primeiro disco, essa percepção surgiu. Nosso foco é promover um intercâmbio entre as comunidades, provocar um protagonismo de todas. Quem está a fim de trocar vai ser sempre bem recebido”, acredita o artista.
Praia de mineiro
Apesar de morar na região Centro-Sul da capital, a cantora Laura Lopes faz academia e pedala na Leste. E quando escolheu o imóvel para abrir seu estabelecimento, o Gruê Tapas, foi direto na rua Sapucaí, hoje o pôr do sol mais badalado de Belo Horizonte. “O pessoal sai de carro para vir de outras áreas da cidade”, celebra. O restaurante funciona, desde abril, em um imóvel que estava abandonado há 26 anos. “Acho a Sapucaí a rua mais bonita de BH”, diz ela, que divide a via, que só tem construções de um lado e margeia a praça da Estação, com vários estabelecimentos, dentre eles a Salumeria Central.
“Gosto da ideia de se manter um corredor gastronômico de bom nível, com casas do tipo que só encontramos em Lourdes e Funcionários, cafés e outros ambientes mais tradicionais no bairro Floresta – que são as baladas e botecos – tudo misturado”, diz a cantora. “Manter um restaurante de alto nível na rua Sapucaí ainda é um desafio, mas assim a vizinhança se fortalece”.
A nossa Vila Madalena
A relação custo-benefício é um dos chamarizes para a zona Leste. “Queria um lugar bonito com um aluguel pelo qual pudesse pagar”, conta Bruna Martins, proprietária da Birosca S2, bistrô situado há três anos em um imóvel de 1929 numa esquina da rua Silvianópolis, em Santa Tereza. A chef sempre almejou ter um restaurante respeitado em termos gastronômicos (o Birosca já foi citado no “NY Times” como um ambiente elegante e com cara de “casa de vó”), mas lembra que, quando inaugurou o estabelecimento, não ficou satisfeita com o fato de o público chamá-lo de bar. Investiu, então, no cardápio e na infraestrutura. “Agora, a sofisticação tornou-se uma demanda. A região sempre teve gente interessada em algo além do boteco. Santa Tereza nunca vai ser um bairro de ‘emperequetados’ como a Vila Madalena (em São Paulo) se tornou”, afirma.
“Por mais sofisticado que seja um ambiente, se ele existe por aqui é porque dialoga com seu entorno. Um restaurante aos moldes do Lourdes jamais sobreviveria na zona Leste”, acredita Pedro Romero, bailarino e proprietário do hypado bar Zona Last, na rua Pouso Alegre, no Horto.
Aberto em abril, em uma loja de 30 metros quadrados, o estabelecimento oferece petiscos e drinques a preços mais acessíveis que os da Savassi. “O bar é a rua e as pessoas que o frequentam são, sem dúvida, mais abertas em relação ao posicionamento político, filosófico, se importam menos com as aparências”, afirma. A permanência na porta, por ali no chamado “baixo Santa Tereza”, é praxe também na vizinha Gruta, um inferninho na rua Pitangui (ao lado do Galpão Cine Horto) onde nem todo mundo que vai entra. Há quem abra mão da pista de dança para ficar na porta bebendo, fumando e conversando. “O movimento de ocupar (fisicamente) a cidade tem sido forte desde 2011. O que traz uma pessoa da zona Sul até aqui é o deslocamento. A percepção de que a cidade é transitável”, acredita Pedro.
Já a artista plástica Wanatta Rodrigues, 23, destaca o Alto Vera Cruz, para ela “terra fértil”. “De cada dez moradores daqui, três são artistas”, enumera ela, a caminho de um show do 1º Festival de Vilas e Favelas, promovido pela Associação Arebeldia, comandada por Renegado. O bairro abriga o evento que oferece, até a próxima quarta-feira (27), exibição de filmes, oficinas e shows de artistas como Pedro Morais e Marina Machado. E reflete, conjuntamente com os outros bairros da região, a inclinação local para a cultura e a ocupação dos espaços públicos. “Acho que a região é culturalmente rica mesmo”, acredita Wanatta.
Êxodo para o lado boêmio
“Me mudei porque todos os meus amigos estavam morando lá”, conta Bruno Figueiredo, fotógrafo e integrante do coletivo especializado em fotografia Erro 99, que trabalha em um espaço de co-working – o Pomar – no Floresta. “Vivia, desde 2014, em Santa Tereza. Há um mês, vagou um espaço na casa de amigos no Floresta e me mudei pra lá. Antes, residia no Barroca (na zona Oeste)”, diz Figueiredo.
Festival
Promovido pela Associação Arebeldia Cultural, da produtora Danusa Carvalho e do rapper Flávio Renegado, o 1º Festival de Inverno de Vilas e Favelas oferece programação de oficinas, exibições de filmes e shows. Confira abaixo alguns destaques da programação: