Férias

Sem descanso

Ficar sem trabalhar pode gerar angústia, tristeza... fatores estão ligados, segundo especialistas, a questões sociais e fisiológicas, como a chamada “síndrome do lazer

Por Aline Gonçalves
Publicado em 20 de janeiro de 2018 | 04:00
 
 
 
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Acordar sem ter nenhuma obrigação. Poder viajar, visitar os amigos ou se jogar no sofá. As férias são um período agradável e tranquilo para a maioria das pessoas mas há, acredite, quem não goste delas ou as veja com um momento delicado para a saúde. Para essas pessoas, ficar sem trabalhar pode gerar angústia, tristeza, dores musculares, gripe, entre outros problemas (veja queixas frequentes no infográfico abaixo).

A secretária Ana Cláudia Barbosa passa por isso. De maneira recorrente, enfrenta as férias doente. Já teve sinusite, faringite, enxaqueca e crise de labirintite, que a obrigou a gastar 24 horas deitada – detalhe, ela estava em viagem para a praia. No último dezembro, um dia após deixar de ir ao escritório, começou a sentir-se mal. “Fiquei 14 dias tomando antibiótico por causa de uma infecção de garganta”, lembra. “Acredito que as crises ocorrem pelo fato de que meu corpo relaxa, sabe que posso descansar. Normalmente, tenho uma rotina intensa: trabalho, levo minha filha para duas escolas, faço as atividades da casa”, enumera.

Para a estudante universitária Giovanna Neves o cenário repete-se desde adolescência. “Alergias são corriqueiras, assim como inflamação na garganta durante as férias”, conta. A rotina entre estudos e estágios também não é completamente abandonada nem quando está na praia, visitando os familiares. “Eu sinto falta do trabalho, gosto da agitação”, diz, ao confessar que segue checando o e-mail de trabalho nesses dias livres. Já o motorista Luiz Gustavo Lopes queixa-se mesmo é do cansaço extremo, mas no início das férias. “Não consigo relaxar nos primeiros dois, três dias”, afirma.

Responsável, hoje, por gerenciar mídias sociais de diferentes empresas e profissionais liberais, a jornalista Cecília Barbi, quando está em férias, sente-se “aflita” e “louca pra voltar”. “Como sempre trabalhei com web, que é uma coisa dinâmica, mesmo em férias eu estou sempre de olho nas redes sociais. Então, me sinto um pouco impotente se vejo algo que pode gerar um post bacana pra algum cliente e, só porque estou em férias, ‘não posso’ fazer”, comenta.

 

FOTO: Lincon Zarbietti
Pessoas que nao gostam de tirar ferias
Responsável por gerenciar mídias sociais, Cecília Barbi não consegue desligar-se em férias

Para Frederico*, a tristeza e o desânimo são os sintomas. “Perco o rumo, considero as férias tempo perdido”, diz. “O trabalho é o local em que mais socializo, sem ele fico só”, argumenta.

Síndrome do lazer

Ao debruçar-se sobre um cenário com exemplos como esses, o pesquisador holandês Ad Vingerhoets, professor de psicologia clínica da Universidade de Tilburgo cunhou, no início dos anos 2000, o termo síndrome do lazer. Parece mais atual do que nunca. Refere-se a um grupo de indivíduos que, apenas quando tomam pausas do trabalho desenvolvem queixas de saúde, em contraste com a ausência virtual de sintomas durante os períodos de trabalho. “Com o termo síndrome do lazer, não reivindicamos descrever uma nova doença. Refere-se unicamente ao momento de início das queixas de saúde, não à própria natureza dessas doenças”, explica Vingerhoets, por e-mail.

 

FOTO: Paramount Pictures/Divulgação
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No filme “As Férias da Minha Vida”, Queen Latifah interpreta uma mulher que só valoriza o período de descanso ao descobrir-se com uma doença terminal

Na análise do especialista, existiria uma espécie de competição entre as informações associadas às funções internas do corpo e os estímulos externos. Assim, os sinais internos serão conscientemente percebidos quando estiverem com intensidade maior ou quando a entrada de fatores externos for menor. “Isso poderia explicar porque as pessoas muito ocupadas são mais conscientes de suas sensações corporais durante o tempo de lazer,”, diz. “Esse modelo é principalmente adequado para sensações que são, relativamente, menos intensas, como fadiga ou dores vagas”, completa.

Para queixas como sintomas de gripe, febre ou ataques de enxaqueca, Vingerhoets sugere outra análise. “Há evidências de que, em trabalhadores com alta carga de trabalho, a produção de adrenalina não só é aumentada durante o horário de trabalho, mas também à noite e nos períodos de descanso. O ‘motor’ continua em funcionamento enquanto, do ponto de vista fisiológico, não há necessidade. Essa energia ‘inútil’ pode se tornar um desequilíbrio, resultando, entre outras questões, em um sistema imunológico enfraquecido”, observa.

 

FOTO: Youtube/Reprodução
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No esquete “Férias”, do canal “Porta dos Fundos”, Gregório Duvivier é um homem que volta ao escritório um dia após entrar de férias e já retoma o trabalho

 

Especialista em clínica médica e em nutrologia funcional, Sarina Occhipinti, do Instituto Sari, também fala sobre a questão da imunidade nos períodos de folga, mas tendo em vista o papel de outro fator. “O estresse é uma reação do corpo à mudança, ele entende que sair do equilíbrio é ameaça. Assim, durante o estresse (comum no ambiente de trabalho), o corpo reage para se defender. O principal hormônio responsável por isso é o cortisol, que o coloca em estado de alerta, aumentando a força muscular e ‘melhorando’ temporariamente o sistema imunológico. Porém, quando passa essa fase, o pico de cortisol cai e a imunidade pode abaixar”, explica. Dessa forma, no estado de alerta, o cortisol deixaria alguns sintomas “anestesiados”, garantindo resistência a dor e mantendo as doenças latentes.

Fatores sociais

Professora da UFMG, Christianne Luce Gomes é pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e tem experiência com a temática do lazer há 25 anos (integra o corpo docente do Mestrado em Lazer da UFMG, único do Brasil). Para ela, não só questões biológicas interferem nesse panorama. “Esse mal-estar que acontece nas férias, feriados e finais de semana pode estar relacionado a diferentes fatores. Um deles é decorrente da tradição judaico-cristã, em que a ética do trabalho é um valor fundamental e definidor da identidade das pessoas. Se uma pessoa não faz algo considerado produtivo, sente culpa e angústia, como se estivesse ‘perdendo tempo’. O outro fator é a compulsão pelo trabalho, que, lamentavelmente, é cada vez mais comum e aceita em nossa sociedade”, critica.

Para ela, as pessoas mais vulneráveis à síndrome do lazer são, portanto, os viciados em trabalho (workaholics), incluindo os que precisam bater metas e os responsáveis por estabelecer sua própria rotina. “Certamente, muitos que pertencem às classes populares sacrificam seus períodos de folga para poder sobreviver. Mas uma boa parcela da população padece é da compulsão pelo trabalho”, argumenta.

Psicólogo da Clínica do Bem, Edgar Paulino também defende que a dificuldade em tirar férias pode ser relacionada a essa compulsão. “Não por acaso o termo workaholic é derivado do alcoolismo. Para pessoas com essa compulsão, a diversão não tem sentido e o trabalho é o centro da vida. Essas pessoas, no geral, são competitivas e têm dificuldade de se relacionar, de ter amigos íntimos”, afirma.

Nome fictício*

Descansar é preciso!

Quem sofre nas férias, com dores físicas ou angústias pode encontrar diferentes formas de reverter o quadro e precisa, antes mesmo de o problema se agravar, buscar meios de tratamento. 

“O primeiro passo é reconhecer que tem alguma dificuldade para tirar férias, no caso da pessoa workaholic”, explica o psicólogo da Clínica do Bem, Edgar Paulino, ao sugerir que, nesses quadros, a pessoa deve buscar ajuda médica e psiquiátrica. “Também é preciso conversar com a família e ter disciplina para sair, se divertir, criar coisas fora do ambiente de trabalho”, ensina. 

Especialistas também explicam que é essencial praticar atividades físicas regularmente e se valer de técnicas de meditação e relaxamento, para garantir que os hormônios ligados ao estresse, como o cortisol, mantenham-se regulados. 

A especialista em clínica médica e em nutrologia funcional, Sarina Occhipinti, do Instituto Sari, focado em performance física, mental e sexual dá outras dicas. “Não temos costume de pedir aos nossos pacientes para diminuírem a carga de trabalho e nem alterarem suas vidas, porque é mais fácil nos modificar do que modificar o ambiente”, diz, ao sugerir o uso da neuroplasticidade, definida como a capacidade do cérebro de ser moldado de acordo com objetivos. 

“Iniciamos nossas pesquisas com estresse há mais de 20 anos e sabemos que é preciso modificar a forma como o cérebro percebe o ambiente. Se o indivíduo não vê aquela situação como ameaça, seus níveis de cortisol permanecerão estáveis. Para isso, usamos técnicas de treinamento cerebral, ligamos o cérebro em computador que lê as reações (positivas ou negativas) mediante estímulos específicos. Assim, ele é treinado a reagir positivamente aos estímulos estressores”, explica.

Reeducação

Professora da UFMG, Christianne Luce Gomes é pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e tem experiência com a temática do lazer há 25 anos – ela integra o corpo docente do Mestrado em Lazer da UFMG, único do país. Para a especialista, é preciso, ainda, uma reeducação social, de maneira a valorizar os momentos de ócio. 

Ela lembra que o lazer é uma necessidade humana fundamental que está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na nossa Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do Idoso, além de em vários outros documentos de referência. “Seu valor é indiscutível, embora nem todos reconheçam. Por isso, nossos sistemas formais de ensino precisam educar as pessoas para o lazer também, não só para o trabalho”, argumenta. 

“É preciso estimular as sensibilidades das pessoas para que diversifiquem seus interesses em termos de lazer, para que aprendam a desfrutá-lo e a satisfazer adequadamente essa necessidade tão importante para uma vida com equilíbrio e qualidade”, acrescenta.

Para quem ainda não se convenceu de que o descanso é importante também há um motivo ligado ao trabalho: o lazer ajuda, sim, na produtividade. “Quem sabe relaxar e usufruir com qualidade seu lazer tem mais ideias criativas, como mostra o exemplo de algumas empresas que incentivam seus funcionários a incorporar essa vivência dentro e fora do ambiente de trabalho. Esses benefícios são revertidos não apenas para o trabalho, mas para a própria pessoa, que alcança uma existência mais agradável e mais rica do ponto de vista pessoal, afetivo, social, familiar e cultural”, destaca Christianne. 

“Nos primeiros estudos da psicologia na área das organizações, as pessoas se submetiam a cargas de trabalho imensas. Quando havia período de descanso para se dedicar a outras atividades, o trabalho se tornava mais produtivo, a pessoa ficava bem, produzia mais e melhor. Ou seja, é um mito a ideia de que quanto mais se trabalha, mais se produz: o descanso é extremamente importante”, observa o psicólogo da Clínica do Bem, Edgar Paulino.

Entrevista

Ad Vingerhoets, professor de psicologia clínica da Universidade de Tilburgo, na Holanda, que cunhou, nos anos 2000, o termo síndrome do lazer

O que justifica pessoas doentes quando tiram férias? E quais são as consequências?

Creio que elas possam sofrer de um desequilíbrio entre trabalho e lazer/ausência de trabalho. Eu não ficaria surpreso se isso pudesse ter impacto sobre o bem-estar dos funcionários, tanto diretamente quanto por meio de possíveis efeitos negativos sobre a qualidade dos relacionamentos com parceiros, por exemplo.

O que mudou desde que o senhor começou a desenvolver essa pesquisa (no início dos anos 2000), tendo em vista a popularização de novas tecnologias, que tendem a nos manter mais conectados?

Infelizmente, não fizemos um acompanhamento, mas espero que algum dia um investigador deseje abordar o tópico. A linha entre o trabalho e o privado realmente parece desaparecer, embora também tenha ouvido falar de empresas que impedem seus funcionários de responder e-mails ou chamadas telefônicas fora do horário comercial.

O senhor recebeu algumas críticas de que a pesquisa tenha se baseado, principalmente, na memória das pessoas. O que você tem a dizer sobre isso?

Está certo. Um estudo não é um só estudo, ele precisa ser replicado, como qualquer outro, de preferência com um design mais forte, medidas objetivas, e com atenção adequada a algumas outras explicações possíveis. Serei o último a dizer que esse é um estudo perfeito, que produziu uma resposta definitiva. É assim que a ciência funciona – todo estudo precisa ser replicado por outros pesquisadores.

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