Grace and Frankie

Velhice sem tabus

Estrelada por Jane Fonda, 79, e Lily Tomlin, 77, série “Gracie and Frankie estreia terceira temporada na Netflix com a abordagem necessária de temas como sexualidade, amizade e recomeços na terceira idade

Por Jessica Almeida
Publicado em 18 de março de 2017 | 03:00
 
 
 
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Num dos momentos mais marcantes da série “Grace and Frankie”, cuja terceira temporada será lançada na próxima sexta-feira (24) na Netflix, Grace, (Jane Fonda, 79) é questionada pela filha Mallory sobre como explicaria para seus filhos que a avó faz brinquedos sexuais para outras avós – Grace, junto com a amiga Frankie (Lily Tomlin, 77), começaria a produzir vibradores para mulheres com artrite. A resposta veio a contento: “Estamos fazendo coisas para pessoas como nós. Porque estamos cansadas de ser ignoradas por gente como você”.

Essa cena resume bem a proposta de “Grace and Frankie”: uma reivindicação de espaço e visibilidade por uma faixa da população que é constantemente ignorada, e uma afirmação de domínio sobre vidas que continuam em constante mudança, mesmo com a chegada à terceira idade.

A série começa quando dois casais na faixa dos 70 anos, juntos há 40, se separam porque os homens (Martin Sheen, 76, e Sam Waterston, 76, na pele de Robert e Sol, respectivamente) que são sócios, pedem o divórcio para se casarem um com o outro, uma vez que têm um caso há duas décadas e a união entre pessoas do mesmo sexo foi legalizada em seu Estado. A partir daí, as protagonistas vão morar juntas numa casa de praia que pertence aos quatro e o espectador passa a acompanhar as transformações decorrentes dessa ruptura.

Ruptura tal que não acontece somente dentro da história, afinal é raro ver a dramaturgia – sobretudo, na televisão – colocar idosos como o centro da história. “Há muito tempo não se via na TV norte-americana pessoas da terceira idade como protagonistas”, observa Sylvia Ferrari, uma das editoras do spoilers.tv.br, site de televisão e cultura pop. “E o legal é que fizeram isso juntando a Lily Tomlin, que é uma comediante superconsagrada, à Jane Fonda, que foi um grande ‘sex symbol’ quando era jovem (nos anos 1980, a atriz vendeu milhões de cópias de vídeos em que dava aulas de ginástica), e trouxeram as duas para um contexto supercontemporâneo”.

Ou seja, o idoso não está mais no papel de avô que reluta contra as transformações do tempo. “Não, elas acompanham o agora, são mulheres muito esclarecidas de 2017”, Sylvia acrescenta. “Um dos sinais mais contundentes disso é, por exemplo, a forma como a temática da sexualidade é abordada na trama, ambas são retratadas como sexualmente ativas”.

E isso é levado para o contexto delas. Grace, quando passa sua primeira noite com um novo namorado, encara as inseguranças de não ter mais um corpo jovem, mas sim com rugas e flacidez. Frankie, por sua vez, a aconselha a usar um lubrificante vaginal, afinal, após a menopausa, o corpo da mulher tem dificuldades em se autolubrificar. Riponga, ela mesma produz o seu, à base de inhame, e posteriormente investe em vendê-lo como alternativa mais natural no mercado. Além do próprio empreendimento com vibradores para mulheres mais velhas, mote que será explorado na terceira temporada.

Outra questão que ganha contornos específicos após o envelhecimento, e que também é tratada no seriado, é o divórcio, que é proporcionalmente mais visto como uma espécie de “fracasso” quanto mais o casal ficou junto. “Elas achavam que tinham um casamento perfeito, por mais que admitissem que estavam acomodadas, e a separação seria um baque ainda que os maridos não fossem gays” comenta Sylvia. “E a história mostra elas passando pelo processo de entender que o fim da união não foi uma falha delas. Mas foi difícil. Isso é visto em uma de suas primeiras ‘aparições públicas’ pós-divórcio, que acontece num velório. Elas sentem vergonha, medo de serem escorraçadas, de serem apontadas como párias por não serem mais casadas. A série trabalha muito bem a aceitação do fim do casamento para essa geração que tinha no casar o principal objetivo de vida”.

Se não me vê, não pode me parar

A invisibilidade perante o restante da sociedade que os velhos – e, sobretudo, as mulheres mais velhas – têm que enfrentar também é abordada em “Grace and Frankie”. Numa cena, elas são ignoradas por um atendente, e Frankie rouba um maço de cigarros, dizendo: “Nós temos um superpoder. Se não pode me ver, não pode me parar”. Este é justamente um dos pontos levantados pela antropóloga e professora da UFRJ Mirian Goldenberg, nas pesquisas que desenvolve sobre a velhice desde 2007,e que resultaram em livros como “Corpo, Envelhecimento e Felicidade” (2011) e “A Bela Velhice” (2013).

Ela constatou que a invisibilidade, ao menos para as brasileiras, é, ao mesmo tempo, um fardo e uma conquista. “A invisibilidade social é um verdadeiro sofrimento. Elas dizem: não é nem que me tornei uma velha, eu deixei de ser mulher, ninguém mais me olha, me elogia, fiquei transparente, invisível. Mas, por serem invisíveis, percebem que a juventude ou o corpo/aparência não é o capital mais importante para serem felizes. E descobrem o valor da liberdade, elas ligam o botão do f...-se, aprendem a dizer não e passam a colocar o foco no próprio desejo”.

Mais um ponto de convergência entre a pesquisa da antropóloga e a série é a grande importância da amizade entre mulheres da terceira idade. No meio de toda a adversidade que enfrentam, Grace e Frankie, que até então não se davam muito bem, descobrem que são quem melhor entende uma à outra, assim como as pesquisadas por Mirian Goldenberg.

“Elas dizem que são as amigas que cuidam delas, que telefonam, que levam ao hospital ou ao médico, que se preocupam, que escutam e que conversam. As amigas são a verdadeira família escolhida, a família sem obrigações e cobranças. Com as amigas, elas se sentem livres, para viajar, passear, ir ao cinema, teatro etc. O principal capital que elas acumularam para ter uma bela velhice”, comenta Mirian, que é espectadora e fã da série.

Mas não é preciso estar na terceira idade para se identificar. A empresária e consultora ambiental Margarida Drummond Câmara, 54, ainda tem uns bons anos pela frente até ser considerada “idosa”, mas também acompanha a produção da Netflix – recomendada pelo filho de 23 anos. “É para qualquer idade, não é porque mostra pessoas de 70 anos que só vai tocar quem tem mais de 70. E para os jovens, ela traz a perspectiva de que quem já passou dessa idade também lida com desejo, frustração, preconceito, e não deixa de ter sentimentos, raiva, tesão”, analisa.

Mas, por acaso, ela chegou a viver situações análogas às que as personagens enfrentam por conta do envelhecimento, quando resolveu deixar os cabelos brancos, há seis anos. “Eu comecei a ser tratada como idosa, e no começo estranhei muito o preconceito, as pessoas não te enxergam nas lojas, te destratam, não respeitam, dão troco errado pensando que você não vai perceber”, conta. “Hoje é uma coisa com a qual aprendi a lidar, mas foi preciso rever questões como a vaidade. Sabemos que a discriminação existe, mas não nos damos conta porque está oculta no dia a dia”.

Millennials

Para os mais jovens, “Grace and Frankie” pode ser ainda mais transformadora. Sylvia Ferrari, que tem 32 anos, aponta de que forma. “Assim como séries adolescentes podem criar identificação com pessoas adultas, o mesmo vale para a terceira idade. A gente, quando é jovem, não costuma pensar no que vai ser da nossa vida quando formos idosos, só tendemos a pensar que vai estar tudo estabelecido, não vai haver grandes mudanças”, pondera. “Mas a série mostra o contrário, que tudo pode virar de cabeça pra baixo e a gente vai continuar vivendo. Nossa expectativa de vida está crescendo e precisamos nos preparar para ter energia, porque as coisas não vão parar de mudar. Além de ser um exercício de empatia, que nos faz entender melhor nossos pais, avós, tios”.

Envelhecimento sem neuras

À beira dos 69 anos, a modista Cida Pena segue a vida agitada que sempre levou. Mora sozinha e, durante a semana, segue atendendo as clientes como há 47 anos. Aos sábados, dá aula de costura, e aos domingos, se organiza para a nova semana, recebe filhos e neta, vai a exposições e coloca leituras em dia. “Acabei de ler a biografia da Rita Lee. Ela não é escritora, mas é muito divertida e foi muito transparente. E mostra que conseguiu envelhecer tranquila, apesar das muitas encrencas em que se meteu – e namorando o Roberto (de Carvalho, companheiro da cantora)”.

Assim como Grace e Frankie, da série da Netflix, ela também tem uma amiga que é seu porto seguro. “Nos conhecemos há mais de 30 anos, numa aula de ioga. Somos inclusive vizinhas, e ela me ajuda muito, até passando sabões, quando preciso. Conto e me queixo de coisas com ela que não falo para mais ninguém. E ela a mesma coisa. Viajamos em nossos aniversários. É uma relação de irmãs mesmo”, diz. 

Maria Guimarães (nome fictício) também mora sozinha e já chegou aos 80. Desde sempre enfrenta paradigmas – se casou após os 40, por exemplo. Hoje, viúva, preza pela independência como um de seus principais valores. E continua conhecendo o mundo como fazia com o marido, falecido há cinco anos. “Na ausência dele, tenho viajado com uma amiga que fala inglês, porque eu não falo, mas iria sozinha. Já conheço 27 países e chego sempre preparada em cada destino porque pesquiso tudo antes pela internet, na Wikipédia”, explica.

Sua rotina inclui trabalhos manuais e voluntários, exercício físico e todas tarefas administrativas de uma casa. “Também sou vaidosa como sempre fui. Gosto de andar bem arrumada, frequentar lugares bons, ser feliz com o que posso ter. Vou anualmente aos médicos verificar se está tudo bem e tomo no máximo quatro remédios por dia, o que acho uma glória para alguém que já tem 80”, acrescenta. “Acredito que a gente não deve pensar muito que já tem oito décadas, pois dá uma sensação de fim da linha. Mas é aí que penso que não tenho futuro, tenho presente. E por isso procuro sempre ser útil, fazer um agrado pro outro. É o que me emociona e me satisfaz”.

A chegada à maturidade trouxe para o empresário Luciano Alves de Oliveira, 63, o melhor aproveitamento de seu tempo. Não que ele já tenha se aposentado, mas, graças à tecnologia, consegue fazer seu trabalho com muito mais rapidez – e o espaço que sobra no dia, dedica a si mesmo. “Sem tirar o pijama, fechei quatro negócios, fiz quatro orçamentos. No tempo que sobra, leio, vejo filmes, tomo chope no happy hour com os amigos. E aos fins de semana, frequento shows e casas de rock. Gente mais nova que eu fica impressionada com o fato de, às vezes, eu voltar às 5h da manhã”, comenta.

Tendência

Por sua vez, a cantora paraense Dona Onete, 77, que começou a carreira artística aos 72, não se furta de falar da sensualidade em suas letras – e foi celebrada recentemente por isso, no programa “Amor & Sexo”. Na próxima quinta (23), ela vem a BH falar desse e de outros assuntos no projeto Retrato de Artista. “Na terceira idade, acredito que o sexo é fatalmente diferente, tem mais a ver com passear, conversar, lembrar das coisas, dar e receber carinho. O que não significa que a gente tenha que se furtar disso”, assegura. 

A antropóloga e professora da UFRJ Mirian Goldenberg acredita que essa é uma tendência. “Está mudando muito rapidamente. As mulheres mais velhas estão adquirindo um protagonismo nas propagandas, novelas, séries, filmes. Os velhos também. É a revolução do século XXI: a mudança na forma de enxergar e escutar os mais velhos”.

Olhar inclusivo para a velhice

Sensualidade Após declarar que festejaria a chegada dos 70 fazendo nudes no fim do ano passado, a atriz Nívea Maria disse, recentemente, que diretores se esquecem que a terceira idade vive, ama e faz sexo. “Nem todos são como a Suzana (Pires) e o Walther (Negrão)”, falou, referindo-se aos autores de “Sol Nascente”, novela na qual atua.

Conhecimento Cantor, compositor, poeta e escritor, Martinho da Vila, 79, prova que nunca é tarde para aprender cursando o quinto período do curso de Relações Internacionais de uma universidade particular do Rio de Janeiro. “Várias pessoas de uma certa idade, até de 50 anos, me disseram que foram incentivadas por mim a voltar a estudar”, afirmou.

Youtuber Prestes a completar 90 anos, o ex-apresentador do “Jornal Nacional” acaba de abrir um canal no YouTube, que tem tudo a ver com um marco em sua carreira: narrar a Bíblia. É isso o que ele tem feito em vídeos liberados desde o último dia 12, se aproximando, a seu modo, de uma linguagem que é tida como exclusiva dos mais jovens. 

Heróis idosos Até no mundo dos super-heróis o novo é ser velho. Em “Logan”, último filme da franquia X-Men, Wolverine aparece grisalho, enrugado e com dificuldade até para acionar suas famosas lâminas. A tendência começou nos quadrinhos, nos anos 2000, e trouxe leitores adultos de volta a títulos da editora Marvel, que enxergou um filão a ser explorado.

Filme mostra que "sempre é tempo"

O documentário “Envelhescência” (2015), filme de estreia do gaúcho Gabriel Martinez, nasceu justamente da sensação do diretor de que estaria velho – aos 34 anos – para começar uma nova empreitada. “O questionamento desse pensamento me instigou a pergunta: ‘Quando estamos realmente velhos para começar algo novo?’, e isso me levou a procurar possíveis personagens”, conta.

Foi ao encontrar histórias como a de Edson Gambuggi (que entrou na faculdade de medicina com 76 anos) e a de Judith Caggiano, (na foto acima, que fez a primeira tatuagem aos 73 anos e hoje tem mais de 20 tatuagens espalhadas pelo corpo) que ele começou a analisar o questionamento sobre “o que é ser velho”. “Após conversar e ouvir os personagens, hoje sei que muitas coisas que acreditamos não ser propícias à velhice não passam de falsos limites que criamos a partir do nosso preconceito sobre essa fase da vida”, diz.

Martinez acredita que muito desse preconceito está ligado à questão da perda do vigor físico, coisa com a qual ainda tenhamos dificuldade de lidar, em geral. “O mais importante é ter o entendimento de que não precisamos da nossa melhor forma física para desfrutarmos o que pode vir a ser a melhor fase de nossas vidas. Após os 60 anos, podemos surfar, saltar de paraquedas e, até mesmo, correr maratonas”, comenta. “Infelizmente, ainda não são muitas as produções do mainstream que abordam essa questão, mas acho de extrema importância trazer mais exemplos positivos sobre a vida na terceira idade. Somente assim conseguiremos criar uma nova percepção sobre essa fase de vida”, afiança.

 

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