Nosso rolê cultural

Cinema no paredão da favela

Projeto Cine Parede exibe filmes na Vila Antena, no aglomerado Morro das Pedras, para moradores

por Joana Suarez

Assim que o sol caiu, pouco depois das 19h, devido ao horário de verão, o paredão branco da Vila Antena, no Morro das Pedras, virou uma tela de cinema. O filme da vez era “Mogli – o Menino Lobo”, que esteve em cartaz em abril deste ano e agora passava ali no aglomerado de sete vilas da região Oeste de Belo Horizonte, no improviso, para quem quisesse ver. A pipoca era por conta da comunidade. Rapidinho juntou umas 30 crianças na escada, na grama, no escorregador, nas almofadas colocadas no chão do parquinho, metros abaixo da parede que exibia o garoto-lobo pulando pela floresta, tal qual os meninos de lá faziam, minutos antes do filme começar. Às primeiras cenas, fez-se o silêncio e os olhinhos começaram a brilhar ao refletir a luz do projetor.

Naquela noite, a dona de casa Sirlene Maria de Paula também fazia sua estreia diante da tela grande, assitindo ao filme com a mesma admiração dos seus quatro netos. “Já pensou, uma mulher de 48 anos nunca ter ido no cinema?”. O problema acabara de ser solucionado, a sétima arte foi até Sirlene, pegou ela de surpresa no caminho de casa e a fez sentar na escada com a netinha mais nova dormindo no colo – outra estreante, que ainda terá muito enredo para ver.

Aproximar a cultura e as pessoas da comunidade, se apropriar dos espaços públicos, fazer da rua uma extensão da casa, ou do barraco, e ter um momento de lazer sob o ar livre da cidade. Beagá vem sendo cada dia mais tomada por esse movimento transformador. Sempre tem um “rolê” cultural acontecendo, basta estar antenado ou se deixar levar como Sirlene, da Vila Antena, em torno do Cine Parede – projeto de cineclube idealizado em 2009 pelo o pessoal da associação História em Construção, feito por moradores do morro.

“A gente coloca em votação o filme que vai passar. Exibimos produções independentes, filmes franceses, documentários, animações brasileiras e até os blockbusters, mas não perdemos a oportunidade de discutir o cinema e temáticas como território e raça. Nossa proposta é juntar as pessoas da favela em uma praça, em um espaço qualquer, porque muita gente vê o cinema como algo distante. BH tinha várias salas de cinema, Cine Brasil, Royal, Acaiaca, e elas foram acabando”, comentou Horacius de Jesus, 31, um dos fundadores do Cine Parede, que fez curso de cinema no projeto Fica Vivo e faz artes visuais na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg).

Ao final das sessões, ele faz uma roda de discussão com a meninada. Jesus conta como foi quando ele reproduziu a animação brasileira “O menino e o mundo”: “a molecada começou a achar o filme chato, queria mudar, estavam inquietos... aí eu comecei a contar como fazia animação, o que era produção com massinha e fomos trocando ideia”. Dali um tempo, narra Jesus, estava todo mundo deitado de boa vendo o filme. “Todos os espaços são pedagógicos.”, conclui. O desafio, segundo ele, é atrair os adultos para o Cine Parede. Na sessão passada, praticamente só Sirlene tinha mais de algumas décadas de vida. “Vamos nos manter aqui, pode ser para um ou para 30 pessoas. Queremos que a comunidade entenda que ela pode se juntar, pedir o projetor emprestado, se empoderar e passar a ideia pra frente”, destacou Jesus.


No olhar

Transformação social através do olhar e da imagem

Na galeria com a exposição “Favela, uma foto por dia”, Igor, 14, se admirava na fotografia em preto e branco. Nela, ele aparece sentado em um sofá velho, no meio de entulhos e lixo, com o horizonte ao fundo e um cachorro ao lado. A foto se tornou uma lembrança do animal que foi assassinado dias depois do registro. “Os meninos na rua mataram ele. Minha mãe ainda quis chamar os policiais, claro que eles não iriam vir pra isso”, contou Igor, que se lembra de ter chorado junto com a mãe a morte do cachorro. O menino foi o primeiro a visitar a galeria com as fotos de Horacius de Jesus, na Vila Antena, Morro das Pedras – instalada num espaço da associação História em Construção, onde artistas da comunidade podem exibir seus trabalhos.

Quem passava em frente ao local – que é uma casa desocupada que ficou sem uso muito tempo e que a associação recebeu autorização de uso – era chamado a entrar para ver as fotos. Uma senhora entrou com três crianças. Os pequenos olhavam as fotos com presteza de adulto: “o menino tá com um revólver na mão, que violência!”, disse um, “mas é de brinquedo”, retrucou o outro.

A fotografia como meio de transformação social e cultural é também a missão da terapeuta ocupacional e fotógrafa belo-horizontina Isabella Freitas. Foi através de um financiamento coletivo que ela conseguiu arrecadar fundos para fazer ensaios com crianças e adolescentes deficientes e sem condições financeiras. “Conseguimos R$ 6 mil, valor mínimo para fotografar 15 crianças, fazer produção, cenário, roupas etc”, disse Isabella, que está agora selecionando os garotos e já planeja ampliar o projeto Vai e Vem. Ela fez dois ensaios para divulgar o projeto e hoje já tem 25 pais interessados. “Se eu conseguir novos financiamentos, quero que o projeto seja permanente”.

Terapeuta infantil, Isabella explica que Vai e Vem é um brinquedo que pode ser utilizado por crianças com diferentes deficiências, com ajuda de um adulto, inspirando movimento e socialização. “O projeto é um “vai e vem” de trocas, de parcerias, de novas amizades, de solidariedade e amor. De um lado, pessoas que ajudam a financiar o projeto através do financiamento coletivo, do outro, famílias que realizam o sonho de fotografar seus filhos”, narrou.

Normais

“A gente sempre vê crianças “normais” fazendo as sessões fotográficas, e as nossas (crianças) não. Esse projeto mostra a realidade deles e abre portas para quebrar muitas barreiras, que a gente sabe que existe hoje, mostrando que eles podem fazer tudo”, desabafou a dona de casa Ana Paula Tavares, 31, mãe do Vitor, de 8 anos, que tem paralisia cerebral e foi “modelo” do projeto piloto do Vai e Vem. Ele nunca tinha feito esse tipo de foto, mas adorou e se divertiu, graças a paciência e a criatividade da Isabella, diz Ana Paula. “Fiquei com medo de não dar certo, porque não sei se todo fotógrafo saberia lidar”, acrescentou Ana Paula.


Nossos muros

Muro também hospeda pintura representativa

Enquanto está pintando o muro no meio da rua, concentrada na delicadeza de seu pincel, a artista Priscila Amoni interage com o bairro, com quem passa e vive as adversidades de estar imóvel, exposta na cidade móvel. “Fico dias convivendo com as pessoas do entorno”, diz Priscila, que leva até seis dias para finalizar um trabalho. Ela faz verdadeiras artes em paredes de Belo Horizonte há dois anos, deixando a cidade mais bonita e transmitindo sua mensagem. Priscila gosta de pintar natureza, mulheres negras, as minorias, “pintei uma mulher negra segurando o ‘comigo ninguém pode’, e um útero com muito poder”.

Com seu pincel, ela tenta resgatar o que chama de “encanto que a sociedade está perdendo, pintando numa conotação quase mística as plantas e os poderes não tradicionais”. “As pessoas não acreditam no sublime mais, nessa coisa mágica, invisível”, divaga Priscila.

Ao fazer seu trabalho em uma superfície externa, a artista se depara com o olhar do leigo, de quem está passando, mas diz que o retorno é sempre muito interessante. “Pintar no baixo centro, por exemplo, é muito legal, lá tem todo tipo de gente, que fala cada coisa!”, conta Priscila. “É preciso saber lidar com a diversidade da rua, a arte é a voz de alguém”, completou ela.

Para fazer sua intervenção, ela escolhe o muro, conversa com o dono, pede autorização, e se entre às tintas, muitas vezes sem receber nem R$1 para deixar os trajetos de Beagá mais bonito. Tem pinturas dela e de outros artistas mineiros em vários corredores da cidade, nas avenidas Portugal, Antônio Carlos, Pedro I, além de uma ocupação artística em toda a rua Niquelina, com murais grandes que já viraram um ponto de referência do grafite da capital. Vale a pena apontar o olhar para os muros da cidade.

Expediente

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