Como disse na semana passada, no final de 1993, quando a lagoa da Pampulha tinha 70% do seu espelho d’água comprometido por aguapés, acabei entrando de cabeça na empreitada que uma das empresas do Grupo Sada resolveu assumir. Retirá-los num prazo de três, quatro meses, em plena época de reprodução e de chuvas, cerca de 1 milhão de metros quadrados, não era brincadeira. Confesso que ter passado esse tempo com barro da cabeça aos pés, esturricando no sol ou me encharcando com as chuvas torrenciais, foi uma experiência... FANTÁSTICA!!!
A lagoa sempre me atraiu. Quando menina, saía à noite com o seu Artur em busca de sapos e rãs para a minha criação. Ou, então, nos fins de semana, para passear de barco com meu tio. Naquela época existiam poucas casas na região, morar na Pampulha era mais ou menos como morar no “fim do mundo”. Nasci e cresci próximo à mata da universidade, do córrego Mergulhão, acostumada a ver cobras, taturanas, imune a picadas de bichos, andando descalça, correndo atrás de besouros e tanajuras.
E fico aqui, pensando na menina que fui e que, de certa forma, voltei a ser, pelo menos nas emoções, quando retornei à lagoa, não à procura de sapos, com um balde de alumínio na mão, mas em busca de aguapés, com escavadeiras, caminhões, barcos e uma equipe cheia de disposição e vontade.
Trabalhávamos em dois turnos. À noite, acendíamos uma fogueira para espantar os pernilongos. Conviver com as capivaras era um deleite, triste foi descobrir que carroceiros mal-intencionados, com desculpas de buscar capim, escondiam-nas já mortas sob a forragem. Garças, acostumadas à nossa presença, acabavam descansando na proa dos barcos. Admiravam-me os passarinhos que faziam seus ninhos nos aguapés. Bastava um sopro de vento para se afastarem dezenas de metros: os aguapés e os ninhos. Como saber a quem pertenciam, se cada dia se encontravam em locais diferentes?
Grande parte do meu tempo passei dentro de um barco que, pacientemente, a 5 km/h, arrastava aguapés da água para as margens, onde duas escavadeiras recolhiam o material, jogando-o nas caçambas dos caminhões. Trabalhávamos também com esteiras rolantes e com uma balsa chamada “Brucutu”.
Cerca de 80% da composição dos aguapés é de água, e em poucos dias “montanhas” enormes viravam um simples montinho desidratado. No início, o volume de plantas era tão grande, que mal conseguíamos nos locomover. A impressão era que, quanto mais retirávamos, mais apareciam, pois, à medida que se desgrudavam, iam se expandindo, isso sem dizer de sua acelerada reprodução.
O assoreamento da lagoa era um dos grandes problemas. Quando iniciamos o trabalho, conseguíamos chegar de barco à ilha dos Amores. Após alguns meses, só com remos e muita dificuldade. Segundo Burié, um dos nossos ajudantes: “A profundidade ali era de mais ou menos dois pés de garça”. O mesmo Burié que, ao dar uma entrevista numa rádio, denunciou o roubo das capivaras e com peculiar espontaneidade falou do assoreamento, com direito a “pés de garças” e tudo. Alguém na prefeitura não gostou, chamou-o num canto e pediu que falasse menos (besteiras). Invocado, saiu falando que nem condenado, afinal, não dissera nenhuma inverdade. Além do mais, adorava um microfone.
Por ser a única mulher onde trabalhavam muitos homens, era a mais requisitada a dar entrevistas. De camiseta Hering, calça jeans, botina de borracha, um chapelão horroroso na cabeça (depois trocado por um bonezinho mais discreto) e normalmente respingada de barro, fugia das câmaras sempre que podia. Com uma entrevistadora muito simpática, chamei-a num canto e disse: “Olha a minha situação: como é que vou aparecer assim na TV? Olha o meu estado? Pele esturricada, cabelo idem, roupa imunda, cara suja de barro...” Sabe o que ela disse? “Passa um batonzinho!”
Adorei! Depois, mesmo nas entrevistas de rádio, gostava de dizer: “Espera aí, que vou passar um batom!” (o que, de certa forma, me fazia sentir mais à vontade).
Outro problema: poluição. Esgotos, inclusive de cidades vizinhas, despejam na lagoa toneladas de dejetos, apesar dos contínuos esforços dos prefeitos. Como se não bastasse, lixos de toda espécie, vindos principalmente com as enchentes provocadas pelas chuvas. Cansamos de “trombar” com sofás velhos, aparelhos de TV, colchões de mola (um dos quais gastamos horas para soltar da hélice de popa). Isso para não dizer do porco, cujas entranhas putrefatas (socorro!!!) se engastalharam no motor, no meio da lagoa, num sol de meio-dia, na imensidão de aguapés. Quase morri. De tudo: calor, aflição, mau cheiro e arrependimento de estar sem o celular (que mais parecia um tijolo) para comunicar ao mundo nossa lastimável situação. Eu e o barqueiro, parados no meio do nada, tentando nos desvencilhar de um porco enorme e inchado que resolveu se agarrar à nossa hélice. Colchão de mola ainda vai, mas porco?
Por várias vezes socorremos garotos no meio da água. Em dias de calor, a molecada enfiava garrafas PET vazias no calção e se atirava na lagoa numa perigosa travessia. No meio do caminho, claro, as garrafas iam se enchendo de água, e eles, apavorados, começavam a se debater. De longe avistávamos a cena. Largávamos tudo e, acelerando os motores, íamos socorrê-los. Tiramos tantos meninos, que no fim começamos a desconfiar de que estavam se “afogando demais”. Apesar dos esculachos e “puxões de orelha”, continuavam a se jogar... E a passear de barco, naturalmente.
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- Laura Medioli
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Aconteceu na lagoa
A lagoa sempre me atraiu. Quando menina, saía à noite com o seu Artur em busca de sapos e rãs para a minha criação
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