O distúrbio do sono em crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) vai além de noites mal dormidas. É que essa alteração neurológica, além de modificar comportamentos do público infantil, também se estende para os reflexos nas famílias. Se os pequenos não conseguem dormir, consequentemente, alguns responsáveis por eles também não descansam. Uma pesquisa publicada pela Academia Americana de Medicina do Sono (AASM- sigla em inglês), em 2016, mostrou que o estresse perceptível em famílias de crianças com deficiências do neurodesenvolvimento, muito provocado por problemas de sono, pode levar ao colapso do funcionamento familiar, em casos graves.

O estudo chamado de “O uso de melatonina por crianças: perspectivas dos pais” diz que a falta de sono dos pais torna seu próprio funcionamento diurno mais desafiador, e tarefas simples do dia a dia se tornam mais difíceis. “O estresse é especialmente perceptível em famílias de crianças com deficiências do neurodesenvolvimento, onde os problemas de sono aumentam o esgotamento associado a ter um filho com algum tipo de transtorno. As consequências dos distúrbios do sono de uma criança no sono dos pais são frequentemente a razão pela qual uma criança é levada à atenção de um profissional médico”, revela a pesquisa.

Ao observar as projeções das autoridades de saúde, o assunto desperta a necessidade de um olhar mais aprofundado sobre a situação. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) acredita, com base em estudos epidemiológicos realizados nos últimos 50 anos, que a prevalência do TEA parece estar aumentando globalmente. O reforço da conscientização sobre o tema e a expansão das ferramentas de diagnóstico são algumas das explicações para a alta. O órgão internacional estima que, em todo o mundo, uma em cada 160 crianças tenha o diagnóstico de autismo. Algumas pesquisas, no entanto, indicam que esses números são significativamente mais elevados, principalmente porque os índices em países de baixa e média renda ainda são desconhecidos.  

Natália Maia de Queiroz, de 40 anos, tem dois filhos. Um deles é Bernardo Queiroz Ferreira, de 6 anos, diagnosticado com TEA. Ela conta que a dificuldade que o filho tem para dormir acaba impactando no exercício de sua profissão. “Eu preciso descansar para trabalhar, para manter a minha mente saudável e produzir. Trabalho com criação, então necessito estar com a mente mais tranquila. Se ele não dorme, automaticamente também não durmo. Então, sinto falta de dormir pelo menos oito horas diárias, sem interrupção.” 

Situação semelhante é a de Rita de Cássia Ferreira Souza, 49 anos. O filho dela, André Vinícius Ferreira Souza, de 11 anos, foi diagnosticado com TEA aos 8 anos de idade. Mesmo antes do parecer médico, o garoto já tinha dificuldade para dormir. “Passávamos horas e horas com ele acordado. Na época, eu gravava vídeos dele durante a madrugada e postava nas redes sociais. As pessoas mandavam simpatia, falavam para que eu o levasse para benzer e outras coisas mais. Quando ele fez três anos, teve uma anemia por falta de ferro. Aí eu fui obrigada a abandonar a minha vida profissional para cuidar do meu filho,” relembra a contadora. 

Para o psiquiatra e coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) Francisco Assumpção, é possível dizer que crianças com transtornos de neurodesenvolvimento têm mais chances de ter padrões de sono alterados. “Existem estudos que sugerem que elas tendem a ter um sono de pior qualidade, de menos horas, esse tipo de fenômeno. E isso vai se refletir comportamentalmente no decorrer do dia. No entanto, essas alterações fazem parte dos sintomas, mas não são patognomônicas, ou seja, não significa que é uma característica do quadro.”

Renata Mendes e o filho, Mateus Mendes, hoje com 18 anos - Foto: Flávio Tavares/O Tempo

Ouça o podcast: "O pesadelo do sono para crianças autistas"

As dificuldades para além do sono 

Lidar com os distúrbios do sono é só um dos vários desafios enfrentados pelas famílias de crianças com autismo. O transtorno, muitas vezes, impõe uma carga emocional e econômica significativa sobre os pacientes e suas famílias. Ter acesso aos serviços e apoio adequados, como educação e saúde, não é missão simples para os envolvidos. Sem contar que, às vezes, muitas famílias ainda são obrigadas a encarar o isolamento social devido ao estigma e à falta de compreensão sobre o transtorno. Tudo isso afeta diversos aspectos da vida diária e os relacionamentos dentro do núcleo familiar.

Rita de Cássia Souza diz que perseguiu o diagnóstico de autismo do filho André por cinco anos. Durante esse tempo, ela entrava e saía dos consultórios sem respostas ou com a afirmação médica de que o filho não tinha nenhum transtorno. “Isso fez com que, em 2020, o André fosse operado por causa da pisada equina - na ponta dos pés - um sinal comum em autistas. Mas, como nenhum neuropediatra dava a meu filho o diagnóstico de TEA, ele precisou operar as duas pernas, o que acabou resultando no encurtamento do tendão. Hoje, ele voltou a ter a pisada, com menos intensidade, mas que sempre aparece quando ele está mais agitado.” 

Para Renata Regina Mendes uma das grandes dificuldades encontradas neste processo de descoberta do TEA no filho Mateus Mendes, hoje com 18 anos, foi a falta de informação sobre o transtorno. “No início, foi bem difícil porque eu não fazia ideia do que era o autismo. Quando ele estava na educação infantil, as professoras me disseram que ele parecia ser uma criança autista. Mas eu nunca tinha ouvido falar disso. Então, a partir daí, comecei a levá-lo ao médico, a buscar ajuda psicológica e a participar de palestras sobre o assunto. Mas o diagnóstico mesmo só veio quando ele já tinha cinco anos. Como mãe atípica posso dizer que temos muitas dificuldades. Falta atendimento de saúde digno e gratuito para as nossas crianças. Coisas que não estão disponíveis no SUS,” desaba a mãe. 

No início da pandemia, em 2020, Natália de Queiroz descobriu que o filho Bernardo Queiroz - que ainda não tinha completado dois anos de idade - tinha o diagnóstico de TEA. Mesmo com todas as barreiras do isolamento social, o garoto começou o tratamento com terapias, fonoaudiologia, dentre outros. Hoje, a mãe diz que o maior desafio é com a seletividade alimentar da criança. “Ele é muito seletivo com comida. Então tenho uma dificuldade muito grande em fazê-lo comer, principalmente coisas saudáveis. Não é tudo que ele come, ele tem preferência por alimentos de cor mais clara, dentre outras coisas.” 

Rita enfatiza que as mães enfrentam adversidades o tempo todo. “Somos desafiadas a partir do diagnóstico e acredito que seremos até que a gente feche os olhos, porque o laudo médico não é uma certeza que as terapias, os direitos e os acessos estarão assegurados. Muito pelo contrário. Existem mães que estão na fila do SUS para uma consulta com neuropediatra ou com psiquiatra infantil há três, quatro anos. Isso só compromete o desenvolvimento da criança. Então, somos desafiadas quanto ao sono, quanto à educação, porque as escolas não estão preparadas para receber nossos filhos. E essa falta de previsibilidade quanto ao futuro dos nossos filhos autistas me preocupa muito.” 

Redes de apoio 

Mesmo sem saber quais obstáculos o filho terá que enfrentar no amanhã, Rita de Cássia, se uniu a outras mães, com as mesmas preocupações que as dela, e fundou a Associação Conexão Mães Neuroatípicas-MG. A organização reúne mais de 200 famílias que lidam com o TEA. “Oferecemos assistência, acolhimento, direito ao lazer e à dignidade alimentar. O intuito é mostrar que nós olhamos para essa parcela da sociedade que as pessoas fingem não ver. Somos famílias invisíveis, com um custo muito caro, porém nós existimos e a nossa luta é para mudar essa realidade, e se Deus quiser iremos conseguir. Então, vamos vivendo um dia de cada vez e nos apoiando.” 

Conforme Renata Mendes, que também faz parte da associação de mães, cuidar de quem cuida é muito importante. “Nós temos o nosso grupo de apoio, que surgiu através dessa necessidade mesmo, de apoiarmos umas às outras e de dar suporte aos nossos filhos. Então nós nos transformamos em uma família também, de mães atípicas que estão ali, correndo atrás dos nossos direitos e os dos nossos filhos,” finaliza.

Conexão Mães Neuroatípicas durante atividade no Parque Guanabara, em Belo Horizonte - Foto: Arquivo pessoal 

Investimentos 

A reportagem questionou o Ministério da Educação (MEC) a respeito do quanto foi destinado para a inclusão de crianças com TEA nas escolas do Brasil nos últimos anos. A pasta diz que vem designando recursos para a afirmação e o fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI), que inclui os estudantes autistas. Em 2023, o Programa Dinheiro Direto na Escola recebeu um investimento de R$ 237.294.000,00, atendendo a 11.430 escolas e 190 mil estudantes. Até este mês de julho, o MEC diz ter investido R$ 190.992.000, alcançando 9.484 instituições de ensino. 

Já o Ministério da Saúde, quando questionado sobre quanto foi destinado para o tratamento de crianças com TEA, afirmou que atualmente, existem 270 Centros Especializados de Reabilitação (CER) habilitados para oferta do cuidado aos pacientes autistas. Conforme a pasta, os investimentos de recursos federais para o custeio dos serviços, até o ano de 2022, totalizaram R$ 689 milhões anuais. Em 2023, até outubro, o valor de repasse para 356 serviços foi de R$ 728 milhões. Para 2024, foram aprovadas propostas de construção de 20 CERs, totalizando R$ 170 milhões para novas obras.

Editoria de Arte/O Tempo