Investigação

Vídeo: Bolsonaro chama militares de 'traíras' e ataca a empresária Luiza Trajano

O então presidente fez as declarações na mesma reunião ministerial em cobrou aliados a agir antes das eleições para evitar vitória de Lula, que ele dava como certa

Por Renato Alves
Publicado em 09 de fevereiro de 2024 | 11:47
 
 
 
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Na reunião ministerial de 5 de julho de 2022, em que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) cobrou os subordinados que usassem os cargos para disseminar informações falsas sobre supostas fraudes nas eleições, ele também atacou desafetos. Chamou militares que integraram o seu governo de “traíras” e fez insultos contra os irmãos Abraham e Arthur Weintraub (ex-ministro da Educação e ex-assessor da Presidência, respectivamente) e a empresária Luiza Trajano, dona e fundadora do Magazine Luiza, uma das maiores redes de varejo do país.

No caso dos “traíras”, Bolsonaro não citou nomes, mas deixou claro que se referia aos militares que haviam deixado seu governo. Ele fez referência ao general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi um dos primeiros a sair. O filho dele, Caio Cesar dos Santos Cruz, é representante de uma empresa israelense. Em 2023, depôs à Polícia Federal na investigação da Abin Paralela, por ter vendido o sistema de monitoramento para o governo.

“Olha os traíras que já passaram pelo nosso governo, inclusive, militares. Tem um militar aí, general, que tinha interesse em compra de armamento em Israel através do respectivo filho, vira inimigo mortal da gente. Olha o outro que foi, aqui, porta-voz. Ficou um ano sem fazer porra nenhuma aqui, porque eu acabei com a figura do porta-voz, mas quando ele foi embora, não interessa o motivo, virou grande escritor de jornal para sacanear a gente”, afirmou Bolsonaro.

Jair Bolsonaro se referiu ao general Rêgo Barros, que foi porta-voz no seu primeiro ano de governo. “Olha o outro traíra que eu mandei para os Estados Unidos. Dei emprego pra ele de 22 mil dólares por mês, né, Paulo Guedes (ministro da Economia)? O outro irmão dele, 10 mil dólares por mês. E o cara vira inimigo. E alguns preocupados dele ser preso. Não vai ser preso. Ele está pronto pra fazer uma delação premiada no Supremo. O que ele vai falar? O que der na cabeça dele”.

“Esses caras têm que viver à custa do Estado, é igual verme e carrapato”

Em seguida, Bolsonaro disparou contra os irmãos Abraham e Arthur Weintraub e a empresária Luiza Trajano. Disse que todos vivem apenas às custas do Estado. “A única empresária de esquerda aí, a Magazine Luiza [sic], tá se ferrando, tá se ferrando, tá afundando. Esses caras têm que viver à custa do Estado, é igual verme e carrapato, não adianta falar pra sair da vaca, vai comer capim, que ele morre”, afirmou Bolsonaro.

Contrariando a fala de Bolsonaro, no terceiro trimestre de 2022 (período da reunião ministerial), o Magazine Luiza registrou lucro de R$ 331 milhões e reverteu o prejuízo de R$ 190 milhões que havia sido verificado em igual trimestre do ano anterior. Em 2021, Trajano foi apontada como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista americana “Time”.

Vídeo de reunião ministerial é apresentado como uma das maiores provas

Um vídeo com a gravação da reunião ministerial foi encontrado em um dos computadores de Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro à época. Ele mostra Bolsonaro dizendo aos ministros que era necessário agir antes das eleições para que o Brasil não virasse “uma grande guerrilha”.

As imagens foram divulgadas primeiro no site do jornal O Globo nesta sexta-feira (9) pela colunista Bela Megale. Ainda na manhã desta sexta-feira, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou pública a íntegra do vídeo.

O vídeo da reunião presidencial de 5 de julho de 2022 é tido pela PF como uma das principais provas da investigação que levou à operação Tempus Veritatus, deflagrada na quinta-feira. Para a corporação, as imagens, que têm mais de uma hora de duração, revelam “o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo”. A partir dessa reunião, a PF aponta que houve uma sequência de eventos para o planejamento do suposto golpe de Estado. 

Na reunião ministerial, Bolsonaro ordenou a disseminação de fake news para tentar reverter o quadro eleitoral. Nervoso, o presidente disparou ofensas e palavrões. E exigiu o envolvimento de todos numa campanha para desmoralizar o sistema eleitoral, admitindo uma derrota nas urnas, mesmo a quatro meses da votação.

“Nós sabemos que, se a gente reagir depois das eleições, vai ter um caos no Brasil, vai virar uma grande guerrilha, uma fogueira no Brasil. Agora, alguém tem dúvida que a esquerda, como está indo, vai ganhar as eleições? Não adianta eu ter 80% dos votos. Eles vão ganhar as eleições”, disse Bolsonaro.

Para impedir a, segundo ele, iminente vitória e posse de Lula, Bolsonaro propôs a redação de um documento afirmando ser impossível “definir a lisura das eleições”. Ele cobra inclusive a inclusão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na tentativa de impedir a realização da eleição.

“Nós não podemos, pessoal, deixar chegar as eleições e acontecer o que está pintado, está pintado. Eu parei de falar em voto imp... e eleições há umas três semanas. Vocês estão vendo agora que... eu acho que chegaram à conclusão. A gente vai ter que fazer alguma coisa antes”, afirmou o presidente.

Bolsonaro diz que TSE cometeu um erro ao convidar Forças Armadas 

Em outro trecho do vídeo, Bolsonaro diz que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cometeu um erro ao convidar as Forças Armadas para integrar a Comissão de Transparência das Eleições. A medida visava justamente afastar qualquer dúvida sobre a regularidade do sistema eleitoral brasileiro. 

“Eles erraram [ao incluir as Forças Armadas]. Para nós, foi excelente. Eles se esqueceram que sou o chefe supremo das Forças Armadas?”, afirmou o presidente, em meio aos ministros, que ouvem tudo calados.

Bolsonaro citou os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, do STF. Disse, sem mostrar provas, que eles estavam “preparando tudo para o Lula ganhar no primeiro turno” – o petista venceu Bolsonaro no segundo turno. “Alguém acredita em Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes? Se acreditar levanta o braço. Acredita que são pessoas isentas, que tão preocupadas em fazer justiça, seguir a Constituição?”, disse. Ninguém se manifestou.

Heleno discursou e defendeu “virada de mesa” antes das eleições

Outro que falou em tom exaltado na mesma reunião foi o então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno. Assim como Bolsonaro, ele disse que todos deveriam se envolver para evitar a realização da eleição presidencial. Falou em “virar a mesa”. 

“Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições”, afirmou Heleno. VAR é o sistema de vídeo usado em jogos de futebol para revisar lances polêmicos, como pênaltis.

Heleno chegou a propor que servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) fossem infiltrados em campanhas eleitorais. Bolsonaro interrompeu a fala do general e orientou que conversassem sobre o tema posteriormente, em particular.

Também discursaram no mesmo encontro os então ministros da Justiça, Anderson Torres, e da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira. Nogueira afirmou que o TSE era “inimigo” do governo. Assim como Bolsonaro e Heleno, Torres e Nogueira foram alvos da operação de quinta-feira.

O que diz a PF sobre o vídeo e a suposta ‘organização criminosa’

Para conseguir os mandados de busca e apreensão, além das ordens de prisão, para a operação de quinta-feira, a PF apresentou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um relatório. O documento tem análises de investigadores, com material anexado e apresentado como prova. O conteúdo inclui mensagens de textos e áudios, além de vídeos dos investigados.

A representação da PF disse haver indícios de tentativa de que uma “organização criminosa” visava golpe de Estado e planejou a abolição violenta do Estado Democrático de Direito. 

  • A tentativa de golpe de Estado é considerada crime, com pena que varia de 4 a 12 anos de prisão , além da punição correspondente à violência empregada para a busca de tomada do poder – ou permanência no poder, caso a intenção seja beneficiar quem está nele.
  • Já a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito ocorre quando alguém atua com violência ou grave ameaça para impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, como o STF. A punição vai de 4 a 8 anos de prisão, além da pena relativa à violência usada.

Para a suposta trama criminosa, a PF apontou seis núcleos que disseminavam “a narrativa de ocorrência de fraude nas eleições presidenciais, antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e, eventualmente, legitimar uma intervenção das Forças Armadas, com abolição violenta do Estado Democrático de Direito, em dinâmica de verdadeira milícia digital”.

  • 1. Núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral

Forma de atuação: produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado.

  • 2. Núcleo responsável por incitar militares à aderirem ao golpe de Estado

Forma de atuação: eleição de alvos para amplificação de ataques pessoais contra militares em posição de comando que resistiam às investidas golpistas. Os ataques eram realizados a partir da difusão em múltiplos canais e através de influenciadores em posição de autoridade perante a “audiência” militar.

  • 3. Núcleo jurídico

Forma de atuação: assessoramento e elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado. 

  • 4. Núcleo operacional de apoio às ações golpistas

Forma de atuação: a partir da coordenação e interlocução com o então ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, Mauro Cid, atuavam em reuniões de planejamento e execução de medidas no sentido de manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília.

  • 5. Núcleo de inteligência paralela

Forma de atuação: coleta de dados e informações que pudessem auxiliar a tomada de decisões do então presidente na consumação do golpe de Estado. Monitoramento do itinerário, deslocamento e localização do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e de possíveis outras autoridades da República com objetivo de captura e detenção quando da assinatura do decreto de golpe de Estado.

  • 6. Núcleo de oficiais de alta patente com influência e apoio a outros núcleos

Forma de atuação: utilizando-se da alta patente militar que detinham, agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado.

Todas as alegações da PF foram referendadas pela PGR, que enviou um parecer ao ministro Alexandre de Moraes, do STF. Ele decretou 33 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva e 48 medidas cautelares diversas da prisão. Entre elas, estão a proibição de manter contato com os demais investigados, suspensão do exercício de funções públicas e proibição de deixar o País.

Estes são os principais argumentos apresentados pela PF:

  • Bolsonaro efetivamente participou e não apenas ouviu falar sobre um plano de tentativa de golpe. Ele sabia de uma minuta de decreto com medidas para impedir a posse de Lula e mantê-lo no poder. O então presidente da República discutiu o teor da chamada “minuta do golpe” e pediu ajustes. 
  • A versão inicial previa a prisão dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, do STF, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mas Bolsonaro pediu que os nomes de Pacheco e Gilmar fossem retirados, mas exigiu a manutenção do trecho que previa a realização de novas eleições.
  • Com as mudanças no texto original da minuta, Bolsonaro convocou generais e comandantes das Forças Armadas. Ele apresentou a minuta e pressionou os oficiais para aderir ao golpe. Apenas o comandante da Marinha colocou a tropa à disposição, segundo a PF.
  • Militares da ativa pressionaram colegas contrários ao golpe para tentar convencê-los a aderir ao movimento. Em uma das conversas recuperadas pela PF, o general Braga Netto, então ministro da Defesa, chamou o comandante do Exército, general Freire Gomes, de “cagão”.
  • Oficiais do Exército organizaram manifestações contra o resultado das eleições e atuaram para garantir que os manifestantes tivessem segurança. O movimento incluiu o acampamento em frente aos quartéis, onde, de acordo com a PF, militares ensinaram táticas de guerrilhas a civis.
  • O grupo mais próximo de Bolsonaro, incluindo ministros civis e militares, monitorou os passos de Alexandre de Moraes, tocando informações sobre a agenda do ministro do STF. Esse núcleo da “organização criminosa” era comandado pelo ex-assessor especial de Bolsonaro Marcelo Câmara.
  • A intenção do monitoramento era garantir a prisão de Moraes, caso o golpe militar fosse concluído. Segundo as investigações, Marcelo Câmara tinha o “itinerário exato de deslocamento do ministro” nas semanas finais de dezembro de 2022.
  • Em dezembro de 2022, o então chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército, general Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira, se reuniu com Bolsonaro no Palácio da Alvorada e disse que colocaria as tropas especiais nas ruas se ele publicasse a minuta do golpe.
  • Os mais fiéis aliados de Bolsonaro, como Mauro Cid, seu ajudante de ordens, ajudaram a articular e financiar os atos que levaram à invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Mensagens recuperadas pela PF mostram Cid dando orientações e oferecendo R$ 100 mil a uma major do Exército para ajudar na organização dos atos em Brasília.
  • O PL, partido de Bolsonaro, foi usado para financiar narrativas que atacavam as urnas eletrônicas. O partido contratou um instituto para elaborar um estudo questionando o resultado da eleição. Na sede da legenda, os policiais encontraram um documento para decretação do estado de sítio.

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