“Eu estava com 18 anos de idade, e estudava no ginásio, quando meus pais, mudando-se para o interior, deixaram-me só num hotel de São Paulo. Aí, é que eu vim conhecer uma moça, que era noiva, e por quem me apaixonei loucamente.” O homem, de 23 anos, autor desse relato, foi internado no antigo Sanatório Pinel, hospital psiquiátrico localizado em São Paulo, porque gostava demais de fazer sexo.
Assim como ele, também eram expurgados pela sociedade nas décadas de 1920 e 1930 perfis como homossexuais, mulheres cultas, espíritas e idosos. Quem revela esse drama é o linguista Antônio Ackel, que em sua tese de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP) transcreveu as cartas nunca entregues.
Toda documentação foi encontrada pelo pesquisador no Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde Ackel passou mais de um mês verificando mais de 6.500 prontuários. Atualmente, o Hospital Sanatório Pinel pertence ao governo do Estado de São Paulo e atende pessoas com problemas de uso de entorpecentes.
“O hospital atendia uma população privilegiada, e as cartas eram muito bem escritas. O estudo também analisou se é possível que as letras tenham sido malformadas por conta dos tratamentos aos quais os pacientes eram submetidos”, conta.
Um dos textos que chama atenção é da jovem D.D.R., 28, que tinha como “mau hábito” o prazer da leitura. A alegação dos familiares para interná-la foi que a mulher havia apresentado uma mudança radical de comportamento em virtude dos livros que andava lendo, cujo conteúdo tratava dos direitos da mulher e da emancipação feminina. Na carta encontrada em seu prontuário médico, ela revela preocupação com os filhos e diz querer se desquitar do marido, de quem sofria maus-tratos.
Outro paciente tirado do convívio social foi N.B., 25, que tinha inteligência acima da média, era professor e fundou o Liceu Acadêmico de Belo Horizonte. A alegação de seu pai era que ele apresentava tendências homossexuais.
Segundo o pesquisador, na primeira metade do século XX, o governo de Getúlio Vargas foi marcado por um discurso ideológico eugenista. Ackel conta que a pessoa era internada compulsoriamente por apresentar desvio de comportamento, mas, para sair, “era necessário aval de dois médicos e que o ‘responsável’ buscasse, normalmente quem internou”.
A próxima etapa dos estudos será na Universidade Groningen, na Holanda, onde Ackel deverá analisar com mais profundidade as narrativas das cartas, interpretá-las e contextualizá-las.
Houaiss. A palavra pinel significa: “Pessoa meio maluca, adoidada. Ficar pinel: enloquecer, endoidar, ficar louco”. O nome é em homenagem ao psiquiatra francês Philippe Pinel.
Frases
“Mamãe, aflita e horrorizada, na mais horrível situação por poder haver neste mundo, tenho esperado, em vão, aqueles que, sem razão e sem justa causa, me encerraram, de surpresa, neste lugar horrível.”
Mulher, 34 anos, internada porque mentia demais
“Em negócio de mulheres e bebidas, fui o maior dos extravagantes, sem escolha, em nenhuma das cousas. Agora, vejo o mal que fiz, estou arrependidíssimo. Ficarei completamente são?”
Homem, 42 anos, internado por espiritismo
“Não pactuarei com a indignidade que criaste: eu, tua mulher para todos; ela, a mulher que sacia a fantasia. O desquite continua
em pé.”
Mulher, 39 anos, internada sem diagnóstico. Nas cartas, ela revela que sabia que seu marido a traía com a irmã
Saúde propõe uso de eletrochoque
No ano em que a Lei Antimanicomial (Lei 10.216/2001) chega à sua maioridade, o governo federal prepara um documento que coloca em prática uma nova política de atendimento à saúde mental no Brasil. Entre outros pontos, o texto divulgado no site do Ministério da Saúde no último dia 4 – e retirado dois dias depois após receber várias críticas – prevê a internação de crianças em hospitais psiquiátricos e a compra de máquinas de eletrochoques. A pasta alegou que o texto será submetido a consultas.
A legislação atual é resultado da luta iniciada na década de 70 contra a internação compulsória em manicômios. Antes da lei de 2001, era comum que pessoas com (e até sem) transtornos mentais fossem internadas indefinidamente em hospitais psiquiátricos, que funcionavam como asilos, onde sofriam maus-tratos e até mesmo tortura.
Um dos pilares da lei são os Centros de Atendimento Psicossocial (Caps), que atendem durante o dia ou em casos de emergência, evitando que os pacientes fiquem segregados em hospitais, clínicas psiquiátricas ou manicômios.
A política de saúde mental estabelece “que esse fechamento (dos leitos de internação psiquiátrica) deveria ocorrer conforme a pactuação das gestões municipais e estaduais” e “planejamento da implantação de Rede de Atenção Psicossocial”.
Em Minas Gerais, o antigo hospital Colônia, maior do país, e atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, no Campo das Vertentes, até 2017 enfrentava desafios para conseguir encerrar os 147 leitos de saúde mental restantes em 2018.