Instituições de Justiça brasileiras moveram uma ação civil pública com pedido de urgência contra dois escritórios de advocacia por supostas práticas abusivas em contratos firmados com atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, na região Central de Minas Gerais, ocorrido em novembro de 2015.
A ação, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), pelos Ministérios Públicos de Minas Gerais (MPMG) e do Espírito Santo (MPES), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelas Defensorias Públicas dos dois estados, tem como alvos o escritório internacional Pogust Goodhead Law Ltd. (PGMBM), com sede em Londres, e o escritório Felipe Hotta Sociedade Individual de Advocacia, com sede em São Paulo.
De acordo com a ação, os contratos firmados com os atingidos impõem cláusulas que limitam o acesso à Justiça brasileira e submetem os clientes à jurisdição internacional, o que viola direitos básicos de informação, escolha e liberdade contratual.
A maioria das vítimas, ressaltam os autores da ação, está em situação de vulnerabilidade socioeconômica e firmou os contratos sem o devido esclarecimento jurídico.
O PGMBM representa mais de 700 mil brasileiros em uma ação coletiva contra a mineradora BHP Billiton na Justiça do Reino Unido. Embora atue internacionalmente, o escritório é acusado de, com apoio do escritório Felipe Hotta, impor condições contratuais prejudiciais a moradores das regiões afetadas pela tragédia socioambiental.
O PGMBM, no entanto, negou as alegações e garantiu compromisso em promover reparação aos atingidos pela tragédia (veja o posicionamento abaixo).
Entre as práticas denunciadas na ação estão:
- Cobrança de honorários sobre indenizações obtidas no Brasil, inclusive em casos sem participação dos escritórios.
- Previsão de pagamento mesmo em caso de desistência da ação coletiva no exterior.
- Impossibilidade de rescisão contratual por parte dos clientes, exceto em casos de inadimplência dos escritórios.
- Campanhas que desaconselham a adesão a programas de indenização no Brasil, com desinformação sobre os direitos disponíveis em território nacional.
- Uso de ferramentas online que comparam, sem clareza metodológica, os valores esperados na ação inglesa com os valores do Programa de Indenização Definitiva (PID).
Na ação, os órgãos pedem o reconhecimento da jurisdição brasileira para julgar os contratos, a nulidade de cláusulas consideradas abusivas e a proibição de cobrança de honorários sobre indenizações obtidas no Brasil, inclusive em acordos.
Requerem também que os atingidos tenham liberdade contratual, com direito de rescisão sem penalidades, além da condenação dos escritórios ao pagamento de danos morais coletivos, com os recursos revertidos às comunidades afetadas.
Também solicitam que os escritórios cessem campanhas e comunicações que desinformem os clientes, e que sejam obrigados a informar os atingidos sobre a decisão judicial, promovendo contrapropaganda para corrigir as mensagens consideradas enganosas.
A reportagem solicitou um posicionamento aos dois escritórios citados na denúncia. O conteúdo será atualizado em caso de retorno.
O que diz o Pogust Goodhead
Em nota, o escritório Pogust Goodhead afirmou que ainda não foi notificado oficialmente da ação e que tem conhecimento apenas das informações veiculadas pela imprensa.
A banca classificou a iniciativa como parte de uma “campanha de lawfare”, segundo a qual o objetivo seria prejudicar o direito dos atingidos de buscarem indenização integral na Justiça inglesa e pressioná-los a aceitarem acordos nacionais que, segundo o escritório, seriam “incompatíveis com os danos sofridos”.
O PG destacou que os contratos são regidos pela lei inglesa e estão em vigor desde 2018. “Somente agora estão sendo questionados porque foi constatado que o PID não teve a adesão massiva esperada e que centenas de milhares de pessoas decidiram continuar litigando na Inglaterra”, declarou.
Afirmou ainda que tem atuado para esclarecer os clientes sobre as implicações da adesão aos programas indenizatórios no Brasil, que, conforme os termos do acordo, exigiriam a renúncia a ações judiciais no Brasil e no exterior. Por esse motivo, o comitê representativo dos clientes teria aprovado, por unanimidade, em 26 de fevereiro, uma resolução recomendando a não adesão ao PID.
O escritório também afirmou que o processo no Reino Unido exerceu pressão decisiva para a celebração do acordo no Brasil, conforme já reconhecido por autoridades públicas brasileiras, incluindo o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo a nota, os critérios de elegibilidade definidos pelas mineradoras no acordo da repactuação teriam deixado de fora mais de 400 mil autores da ação inglesa. Para essas pessoas, sustenta o PG, a Justiça britânica seria o único caminho possível de reparação.
A banca também informou que não houve alteração nas condições contratuais nem nos percentuais de honorários, que são cobrados apenas em caso de êxito, com atuação pro bono para indígenas e quilombolas.
Tragédia em Mariana
A tragédia em Mariana deixou 19 mortos e afetou milhares de pessoas ao longo da bacia do Rio Doce. Dez anos depois, os processos de reparação seguem marcados por disputas judiciais e relatos de lentidão e violações de direitos.