A Justiça Federal agendou uma audiência de conciliação para o processo que discute a construção de uma pilha de rejeitos de minério da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em uma área quilombola em Congonhas, região Central de Minas Gerais. O encontro será em 31 de julho, às 14h, na sede do Judiciário, no bairro Santo Agostinho, região Centro-Sul de Belo Horizonte. A decisão é uma resposta a uma ação movida pela Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais (N'Golo), que representa cerca de 400 moradores da comunidade de Santa Quitéria.
Serão intimados a participar os seguintes réus citados na ação: CSN Mineração, Estado de Minas, Fundação Palmares e Incra. Conforme a ação, a mineradora deseja construir uma pilha de rejeitos no local e chegou a conseguir, na Justiça, o direito de remover uma casa quase centenária na comunidade. Nesse imóvel vivem dois idosos, seu João, de 74 anos, e dona Geralda, de 66. A imissão de posse foi cumprida nesta semana, levando o idoso a passar mal e precisar de atendimento médico.
Na ação civil pública, a N'Golo pede a suspensão dos efeitos do decreto estadual que declarou de utilidade pública a área destinada ao novo depósito de rejeitos. A entidade argumenta que o local integra o território tradicional da comunidade quilombola de Santa Quitéria. Além de solicitar a paralisação da desapropriação, a N’Golo cobra do Estado de Minas e da mineradora a abstenção de qualquer medida que resulte na retirada dos moradores.
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Uma decisão sobre esses pedidos só vai ocorrer após a audiência de conciliação. Na decisão de marcar o encontro, a juíza Geneviève Grossi Orsi ressaltou que, como a autodeclaração de comunidade quilombola ocorreu neste ano, “não há, à época do decreto estadual, afronta ou descumprimento do artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”. O texto exige consulta livre, prévia e informada a povos e comunidades tradicionais que possam ser afetados por grandes empreendimentos.
Reconhecimento de comunidade quilombola
Nesta sexta-feira (18/7), a Fundação Palmares publicou uma portaria que reconhece a comunidade de Santa Quitéria como um povoado remanescente de quilombo. A reportagem de O TEMPO teve acesso à portaria nº 187, assinada pelo presidente da instituição federal, João Jorge Santos. "Fica autorizado o registro da presente certificação no Livro de Cadastro Geral (...) Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação", completa a publicação oficial.
A pilha de rejeitos filtrados ficará localizada, de acordo com a própria empresa, a cerca de 1 km de distância da comunidade, agora reconhecida formalmente como remanescente de quilombo. O processo de reconhecimento transcorria há oito anos, segundo a líder comunitária Aline Soares.
Estruturas ficarão a poucos metros de igreja e escola
As áreas que são almejadas pela CSN foram incluídas, em julho de 2024, em um decreto publicado pelo governador Romeu Zema (Novo). A medida previa a desapropriação de uma área de 261 hectares, considerada de "interesse público", para a implantação da pilha de rejeito filtrado da mineradora. Desde então, a população da pequena comunidade, que totaliza cerca de 400 moradores, convivia com a incerteza sobre quais imóveis seriam alvo do processo, até que, em julho deste ano, a Prefeitura de Congonhas divulgou o mapa com a área pretendida pela CSN.
Levantamento feito por O TEMPO com base no mapa divulgado pela CSN ao município mostra que, apesar da alegação da mineradora de que a pilha em si ficará localizada a cerca de 1,3 km da comunidade tradicional, a área que será ocupada pela empresa estará a pouco mais de 200 metros da capela do século XVIII com resquícios de construções feitas por escravizados e a 26 metros da escola municipal da comunidade.
História viva
Entre os moradores mais antigos de Santa Quitéria está Paulo Soares, de 76 anos. Nascido e criado na comunidade, ele carrega em si não apenas a memória da terra, mas, também, a herança ancestral de um povo que sobreviveu à escravidão. Neto e bisneto de pessoas escravizadas, ele lembra da infância, em uma casinha de sapé, onde o pai contava as histórias sobre a época da escravidão.
“Ele (pai) falava que o povo passava muita dificuldade, era muito mandado, né, muito humilhado. Eu mesmo ainda fui muito humilhado. Comecei a trabalhar com 12 anos, trabalhava com minha mãe, ajudava ela a capinar arroz. Depois que meu pai morreu, passamos muita dificuldade, tinha dia que minha mãe ia ao canavial, do outro lado do rio, buscava a cana, descascava, picava em pedacinho, punha numa bacia e dava pra gente comer. Nós nos juntávamos ao redor assim e chupávamos. Passávamos dois, três dias sem comer (outro alimento), só comendo cana”, lembra o idoso sem alterar o semblante embrutecido pela vida.
As estruturas da empresa ainda ficarão a cerca de 15 metros do cemitério local e a menos de 400 metros da Unidade Básica de Saúde (UBS). Além disso, o rio Paraopeba, já impactado pelo rompimento da barragem em Brumadinho, está a aproximadamente 100 metros do espaço a ser ocupado pela mineradora para a implantação da pilha.
Além de guardião da memória da comunidade, Paulo também é um dos participantes mais antigos da Folia de Reis local, tradição centenária mantida viva por grupos da zona rural de Congonhas. Todos os anos, entre dezembro e janeiro, ele ajuda a organizar cortejos que passam de casa em casa com bandeiras, músicas e versos que celebram o menino Jesus, Santa Quitéria e São Sebastião.
“Nas casas, a gente ia e cantava oferta, deixava os instrumentos e cantava pedindo pousada para a bandeira. No outro dia, a gente voltava, agradecia e saía para outra casa. E assim ia até dia 20 de janeiro. Antigamente, tinha as pessoas que gostavam mesmo, que saíam e tocavam por amor. A maioria que ainda faz, vai aos ensaios, faz isso por amor. Nós estamos mantendo viva a tradição. Mas todo ano ainda fazemos uma festa, o Encontro de Folias de Santa Quitéria, esse ano vai ser dia 22 de novembro”, convida o idoso.
Relembre o caso
João, 74, e Geralda, 66, vivem dias de tensão desde que a Justiça autorizou a desapropriação da casa da família, construída há quase um século no distrito de Santa Quitéria, em Congonhas. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) quer instalar no local uma pilha de rejeitos — antes mesmo do licenciamento ambiental ser aprovado.
A casa, cercada por nascentes e árvores nativas, é um símbolo da comunidade. Ali, as netas nadaram em piscina natural, o fubá era moído em pedra pelo avô e o forno de barro guardava o cheiro dos biscoitos da matriarca. “A gente não tem apego a luxo, tem apego à memória”, disse dona Geralda em entrevista a O TEMPO.
Na última terça-feira (15/7), oficiais de Justiça, seguranças e funcionários da CSN foram ao local com placas e correntes para o portão. Recuaram após o senhor João passar mal. O idoso, acostumado com a rotina tranquila na casa da família, hoje toma remédios para depressão e ansiedade.
A desapropriação foi autorizada por decreto do governador Romeu Zema (Novo). Segundo a CSN, 27 dos 30 imóveis já foram adquiridos de forma amigável. Segundo os moradores, a judicialização ocorreu porque a casa da família é uma das poucas na região com documentação regular.
Qual o posicionamento da CSN?
Em nota, a Companhia Siderúrgica Nacional informou que o Decreto de Desapropriação foi publicado em julho de 2024, e sua área não abarcou nenhuma área quilombola, garantindo o respeito à integridade territorial e cultural local. Veja o posicionamento da CSN na íntegra:
"Especificamente em relação ao bairro Santa Quitéria, é importante reforçar que ele está localizado a mais de 1,3 km da base projetada da pilha de rejeitos. Além da distância, o projeto foi planejado com uma série de medidas de mitigação, como a criação de uma área de amortecimento, implantação de estradas e cortinas arbóreas, bem como a preservação da mata nativa entre o empreendimento e a comunidade. Essas ações asseguram o isolamento físico e visual entre as áreas operacionais e as áreas habitadas, minimizando qualquer possível interferência.
A Portaria da Fundação Cultural Palmares 187 de 16 de julho/2025 certifica que a comunidade de Santa Quitéria se autodefiniu como remanescente de Quilombo, conforme Declaração de Autodefinição apresentada pela comunidade, entretanto, o processo de demarcação e titulação do território compete ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Assim, a CSN Mineração reforça que o projeto foi concebido com pleno respeito às comunidades locais, e que não haverá impacto sobre seus modos de vida ou direitos territoriais, estando em conformidade com a legislação vigente e os princípios de responsabilidade socioambiental."