Pandemia

Coronavírus: Sem o básico, quem vive na rua tem menos chance de se prevenir

Reportagem ouviu relatos de aumento da pobreza e do preconceito

Por Daniele Franco
Publicado em 22 de abril de 2020 | 08:41
 
 
 
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Desde muito antes de qualquer epidemia, a realidade das pessoas em situação de rua já beira o distanciamento social. A prevenção ao coronavírus para esses cidadãos, marginalizados e com pouquíssimo acesso aos recursos mais básicos, fica em segundo plano, já que há necessidades mais urgentes, como a fome.

“A pior parte do coronavírus é o distanciamento social. As pessoas não se aproximam, ficam com medo de chegar perto da gente”, lamenta Douglas Luiz Azeredo de Oliveira, de 40 anos, que passou os dois últimos anos nas ruas de Belo Horizonte. Para ele, este é o pior momento desde que adotou as vias da capital como casa. Oliveira vende bombons nas ruas e viu sua renda ser reduzida drasticamente com a pandemia, o que o leva a depender ainda mais de doações para se alimentar.

A jovem Ingrid Vitória, de 18 anos, reclama do tratamento que vem recebendo nas ruas desde que a pandemia começou. “Eles (as pessoas) acham que nós temos o coronavírus, somos muito mais julgados, sofremos preconceito, mas não tem nada disso: quem está tendo (a doença) é quem está aí em seus apartamentos”, opina. Ingrid vive nos arredores da praça Raul Soares com o companheiro, Jhonnatan Guilherme, de 20 anos. O casal ganha a vida vendendo balas em semáforos da cidade.

Prevenção

Aos 54 anos, Carlos Lacerda Brasil, outro morador das ruas da capital, agora caminha pela praça da Estação segurando uma garrafinha com sabão líquido. “Foi um presente da pastoral, aí estou lavando as mãos sempre que posso, cinco, seis vezes por dia, na pia que instalaram ali”, conta. Nas ruas há 28 anos, ele conta que tem feito o que pode para cumprir as orientações de cuidado com o vírus. “Cada um tem que fazer aquilo que é necessário fazer, esforcem-se para que esse fantasma desse vírus seja extinto”.

Segundo dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) de março, 9.169 pessoas vivem nas ruas em Belo Horizonte. Nas últimas semanas, a prefeitura informou que duas pessoas em situação de rua tiveram a confirmação da Covid-19, mas já estavam curados. PBH e Estado não informaram dados atualizados. 

Parceria para abrigar doentes

A Prefeitura de BH fez uma parceria com o Sesc Venda Nova para abrigar até 300 pessoas em situação de rua com sintomas do coronavírus. As vagas são destinadas também a moradores de imóveis pequenos onde vivem muitas pessoas, impossibilitando o isolamento.

O número, no entanto, é muito baixo, segundo o coordenador do programa Polos de Cidadania, da UFMG, André Dias. “As ações e medidas já adotadas pela Prefeitura de Belo Horizonte foram muito importantes, mas ainda são tímidas frente ao gravíssimo cenário que vivenciamos de enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus. A prefeitura não trabalha com os 9.169 moradores segundo o CadÚnico, mas com 4.600 pessoas, e isso impede que sejam criadas políticas públicas efetivas”, considera.

O Polos de Cidadania é parte de um grupo de instituições e associações que têm enviado à PBH uma série de sugestões para um trabalho mais assertivo junto à população em situação de rua. Uma delas foi um mapeamento de edificações vazias no centro da cidade que poderiam abrigar essas pessoas durante a pandemia. Moradores em situação de rua ouvidos pela reportagem se mostraram favoráveis à ideia. “Eu iria, a rua não é lugar de viver, não, minha filha”, afirma Carlos Lacerda Brasil, de 54 anos.

Para André Dias, o diálogo entre os movimentos dispostos a ajudar é essencial para melhorar a situação de quem vive nas ruas da cidade. “Estamos nos disponibilizando para esse diálogo e para ajudar na implantação de um plano de contingência emergencial”, diz.

Albergues e pias

A prefeitura anunciou a ampliação do horário de funcionamento do Albergue Tia Branca durante a pandemia. O abrigo vai ganhar um novo endereço, provisório, no bairro Floresta, na região Leste, onde serão acolhidas cem pessoas também durante a tarde. As vagas são destinadas a grupos que precisam de maior atenção, como idosos, sem sintomas de gripe. A instalação de pias e a distribuição de sabonetes também estão entre as ações da PBH.

Agradecimento

Com a cidade mais vazia, quem vive nas ruas da capital conta cada vez mais com a ação de grupos de apoio para sobreviver. “Eu agradeço muito aos vizinhos e comerciantes aqui da região, que me doam sempre que podem, senão eu não teria o que comer ou vestir”, diz Douglas Oliveira, de 40 anos. Segundo a irmã Cristina Bove, membro da Pastoral de Rua, voluntários têm intensificado o trabalho para tentar levar mais conforto para as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade.

Luta pela sobrevivência fica mais dura com cidade vazia

A luta pela sobrevivência é agora ainda mais dura, uma vez que as fontes de renda das pessoas em situação de rua, em sua maioria oriundas de doações ou da venda dos mais variados produtos em sinais de trânsito, dependem da circulação de pessoas pela cidade.

“A gente costumava fazer R$ 150 por pessoa, por dia, vendendo balas no sinal. A gente nem dormia na rua porque conseguíamos pagar a pernoite em um hotel, mas, desde que isso tudo começou, quando conseguimos R$ 10 é muito”, lamentou Jhonnatan Guilherme, de 20 anos, que vive com a companheira na região Centro-Sul de BH.

Outra mudança importante na rotina dos moradores das ruas da capital são as dificuldades que eles relatam para usar o banheiro e se higienizar. Rogério Gutierrez Montenegro, de 49 anos, vive na região Leste da cidade e relata novos desafios para sobreviver.

“No Centro Pop (Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua) a gente conseguia fazer nossas necessidades, tomar banho, descansar, conviver, mas, agora, eles limitaram o número de pessoas que entram”, contou. Ele e o companheiro de rua, Douglas Oliveira, de 40 anos, pedem que a prefeitura instale banheiros químicos. O Executivo municipal informou que o Centro Pop continua aberto, e o único empecilho é a permanência no local para evitar aglomerações.

Adaptações

Colega da dupla, o músico Lucas Gomes, de 36 anos, se adapta à nova realidade. Ele, que também usava o Centro Pop, agora anda pelas ruas com sua guitarra até que seja hora de entrar no albergue para dormir.

“Está bem atípico para mim, porque, além de estar em outra cidade, não tenho acesso a coisas que tinha antes, tipo instituições públicas”. Gomes veio há seis meses do interior de Minas para a capital. 

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