Devolvidos

‘Cultura de migração’ explica voos com deportados em Minas Gerais

Em cinco meses, cerca de 600 brasileiros, a maioria de Minas Gerais, retornaram dos Estados Unidos

Por Jéssica Almeida
Publicado em 15 de março de 2020 | 03:00
 
 
 
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Foi de supetão que Clarissa Moreira, 24, e o marido, Victor Martins Garcia, 21, resolveram pegar o filho Pedro, 3, e deixar tudo o que tinham para trás em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, para tentar a vida nos Estados Unidos. A decisão foi tomada em 1º de fevereiro. Cinco dias depois, eles embarcavam para o México na tentativa de atravessar a fronteira em um esquema conhecido como “cai-cai” – sistema em que o imigrante irregular, sendo pego pela imigração e pedindo asilo, era solto e tinha permissão para viver nos EUA até uma decisão judicial.

Um mês depois, no entanto, a família já estava de volta a Minas Gerais. Eles desembarcaram no Aeroporto Internacional de Confins no sétimo voo fretado que chegou ao Brasil com deportados dos Estados Unidos desde que entrou em vigor, em outubro de 2019, um acordo com o país norte-americano para facilitar deportações. De lá pra cá, dois novos voos chegaram, e o número de pessoas devolvidas já gira em torno de 600. 

O tempo fora do Brasil pode ter sido curto, mas foi suficiente para que a família de Clarissa sofresse uma série de humilhações. “Chegando lá, eles falaram que a gente era detento e, por isso, seríamos tratados como tal. A estrutura era um banheiro químico, um colchão no chão e um papel-alumínio pra nos embrulhar. A gente dormia igual um frango assado”, lembra. “Fomos buscar uma vida melhor, porque aqui, no Brasil, é difícil conseguir uma casa, um carro. Nós até trabalhávamos, mas vivíamos pra pagar contas”, justifica a jovem.

Processo de décadas. Clarissa e a família dela integram um contexto maior, chamado de “cultura de migração”, estabelecido em Minas há quase 60 anos. É por isso que os voos têm aterrissado em Confins. Afinal, a maior parcela dos brasileiros que tentam atravessar a fronteira dos EUA sem os documentos regulares parte do Estado – mais especificamente de cidades da região do Rio Doce, como Governador Valadares. 

O fenômeno acontece há décadas, como explica a doutora em ciências humanas e professora titular da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale) Sueli Siqueira, que pesquisa o tema desde 1998. “No caso de Valadares e de cerca de outras 30 cidades na região, esse processo começa nos anos 60. Além da ideia da migração, há mecanismos para esse trânsito, como a formação de redes que minimizam os constrangimentos de se estar em um lugar diferente, com outra língua, outra cultura”, afirma. 

Histórico. A pesquisadora explica que, em 1964, um grupo de 17 jovens intercambistas de classe média que viajou a trabalho para os EUA contou histórias impressionantes sobre as maravilhas da América. À medida que os relatos se espalhavam, brasileiros da elite passavam a viajar mais ao país com visto de turista. Após o fim da vigência da autorização, muitos permaneciam como não documentados.

Aos poucos, classes média e alta se consolidaram no país como empreendedores, sobretudo nas áreas de construção civil e limpeza. No início dos anos 2000, houve um novo boom de migração, dessa vez com membros da classe baixa em busca de melhores condições de vida.

Em um ano, número de barrados nos EUA sobe mais de dez vezes 

O endurecimento das leis de imigração dos Estados Unidos, o acordo de deportação com o Brasil e as mudanças de procedimentos que dificultam o “cai-cai” fizeram com que o número de brasileiros sem visto barrados no país norte-americano saltasse de 1.500, no ano fiscal de 2018, para 17,9 mil em 2019, conforme dados do Serviço de Alfândegas e Proteção das Fronteiras dos Estados Unidos. 

No entanto, de acordo com a pesquisadora Sueli Siqueira, da Univale, esse movimento não deve arrefecer a cultura de migração. “Esse mecanismo de ir pela fronteira já passou por outras dificuldades, como quando foi exigido visto para entrar no México. O custo fica mais caro, mas esse trânsito vai continuar acontecendo desde que as condições para aquisição de bens de consumo lá continuem melhores que as daqui”, argumenta.
 
Ilegalidade. A Polícia Federal, por sua vez, foca os agenciadores desse tipo de viagem. “Desde 2017, temos uma lei que pune a promoção da migração ilegal. Passamos a ter uma ferramenta mais efetiva no combate a esse tipo de criminalidade”, explica o delegado da Polícia Federal em Governador Valadares Cristiano Campidelli. “Também atuamos na prevenção, analisando criteriosa os documentos apresentados para feitura de passaportes e controlando a saída e entrada de brasileiros do território nacional”, conclui.

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