Seis meses depois de desembarcar no Belvedere e fazer a primeira vítima no Floresta, o coronavírus se tornou definitivamente um problema mais sério nas áreas periféricas de Belo Horizonte. Uma análise realizada por O TEMPO revela que 49 dos 50 bairros mais afetados por casos graves de Covid-19 estão fora da região Centro-Sul. E pelo menos 31 deles são favelas ou ocupações, incluindo o único localizado na zona mais nobre da capital (Nossa Senhora Aparecida).
Considerando apenas os bairros populosos (acima da média de aproximadamente 5 mil habitantes), os mais atingidos são Vista Alegre, Ventosa, Alto Vera Cruz, Vila Maria e Cabana do Pai Tomás, sendo que os quatro últimos estão classificados oficialmente como aglomerados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Nessas localidades, a concentração de casos graves da Covid-19 é de entre 372 e 445 a cada 100 mil habitantes, enquanto a média geral na cidade é de 180. O levantamento considera os pacientes internados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e que testaram positivo para o coronavírus, conforme a classificação utilizada pelas autoridades da saúde.
Especialistas consultados pela reportagem alertam que a situação pode ser ainda pior, devido à maior possibilidade de subnotificação nas áreas mais pobres da cidade. As regiões Leste, Barreiro e Oeste registram as maiores concentrações de moradores hospitalizados com sintomas agudos da nova doença (a metodologia completa desta análise está detalhada ao fim da reportagem).
Veja os detalhes do seu bairro:
O vírus chegou “de avião” à capital, contagiando primeiramente pessoas que tinham acabado de retornar de países onde a pandemia já corria avançada em março. Com alta adaptabilidade ao ambiente urbano, ele não demorou a se disseminar nas áreas de maior densidade populacional e a alcançar as periferias, como explica a coordenadora do Observatório de Saúde Urbana da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Waleska Caiaffa.
“Por estudos genéticos, vemos que o vírus chegou ao Brasil vindo dos Estados Unidos ou da Itália. Ele chegou aqui de avião. E a característica das grandes epidemias é igual no mundo inteiro. As determinantes sociais mostram que, em geral, pessoas de nível socioeconômico mais alto têm uma saúde melhor do que os indivíduos que moram em áreas vulneráveis”, detalha a pesquisadora.
Os boletins quinzenais InfoCovid divulgados pelo Observatório mostram a rota da doença pela cidade. Os casos mais graves seguiram o trajeto das principais avenidas e da linha do metrô, saindo da região Centro-Sul até chegarem aos limites do município, em bairros como o Lindeia, na região do Barreiro, e o Jardim dos Comerciários, em Venda Nova.
O caixa Carlos Antônio Chaves, 29, sentiu os efeitos da pandemia de perto. Ele vive no Alto Vera Cruz, um dos bairros mais atingidos da região Leste, e acredita ter sido contaminado no local. Os pais dele também contraíram o vírus, e a mãe, que tem 61 anos e é diabética, passou mais de 20 dias internada em estado grave.
“Ela ficou entubada e o médico disse para eu me preparar, porque ela poderia morrer a qualquer momento. Morar no Alto Vera Cruz agrava o medo. Tem uma família grande aqui no beco morando na mesma casa, e eles não estão tomando cuidado. Uma delas vende churrasquinho e ninguém se cuida ou usa máscara”, relata.
Um agente social de saúde que atua no bairro há 20 anos e pediu para não ser identificado conta que as ruas do local realmente continuam cheias e nem sempre os moradores tomam as medidas de proteção. Mas ele pondera que as periferias não são o único local da cidade onde existe o desrespeito ao distanciamento (O TEMPO já flagrou a área da Lagoa Seca, no Belvedere, por exemplo, com dezenas de corredores sem máscara).
“Existem pessoas aqui abaixo da linha da pobreza, com seis pessoas morando em dois cômodos. Você vê os famosos, com todas as condições, tecnologia e comida na porta, mas saem de casa porque não aguentam mais. O morador da favela quer interagir e faz isso na porta do boteco e na praça. O ser humano tem essa necessidade”, afirma.
No Cabana do Pai Tomás, na região Oeste, o limpador de vidros Moisés da Silva, 42, diz já serem comuns os relatos sobre moradores vítimas da Covid-19. “Um amigo do meu pai e outro da igreja também morreram, e conheço várias pessoas que pegaram. Fico com medo, porque as casas são todas coladas, então se o vizinho pega, nós temos risco de pegar”, diz. O pai de Moisés morreu aos 76 anos após ter sido infectado pelo coronavírus, e a família suspeita que a contaminação tenha acontecido no hospital onde o patriarca havia sido internado para tratar uma infecção nos rins.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Belo Horizonte se limitou a informar em nota que seriam necessários estudos técnicos mais aprofundados para confirmar se há relação entre as condições de vida nas áreas periféricas e a maior concentração de óbitos e casos graves da Covid-19.
Distância até hospital chega a 3,4 km
Diversos fatores podem provocar o maior impacto proporcional da pandemia nos aglomerados. Os principais são a densidade populacional elevada, a baixa possibilidade de trabalho remoto e o acesso limitado a condições de saneamento ideais, segundo o IBGE.
As dificuldades enfrentadas por essa parcela da população, no entanto, vão além. Um mapeamento divulgado pelo instituto especialmente para fomentar ações durante a pandemia revelou que alguns desses lugares encontram-se fisicamente muito distantes de uma unidade de saúde.
O TEMPO analisou esses dados e concluiu que a distância média entre um aglomerado e o hospital mais próximo é de 1,3 km em Belo Horizonte. Das 192 comunidades classificadas como vilas, favelas e ocupações na capital, 31 estão mais próximas de unidades de saúde localizadas em outros municípios vizinhos.
É o caso da ocupação Esperança, situada dentro do bairro Granja Werneck, na região Norte da capital. Para conseguir atendimento, os moradores do local precisam se deslocar por aproximadamente 3,4 km até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) São Benedito, em Santa Luzia.
Uma das lideranças da ocupação, Edna Gonçalves, 53, explica que a comunidade tem se unido para conter a pandemia com seus próprios recursos. “É muito difícil conseguir atendimento, porque muitos moradores não têm o Cadastro Único em Belo Horizonte. As pessoas não estão fazendo testes. Quando alguém adoece, já comunica às lideranças, fica de quarentena e avisamos à comunidade”, conta a representante.
“O transporte público nem sempre está disponível em todos os horários para a as pessoas irem e voltarem do hospital. Se tiver que voltar à noite, uma vez que os atendimentos nem sempre são rápidos, fica mais difícil. E é uma questão econômica também, pois a pessoa nem sempre tem o dinheiro para o coletivo. E, se está passando mal, ainda precisa ir acompanhada”, acrescenta o presidente da Central Única das Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG), Francis Henrique.
Subnotificação pode esconder situação ainda mais grave
Em Minas Gerais, a maior parte dos exames do tipo RT-PCR, que indicam os traços do vírus no organismo do paciente, são realizados pela rede privada, segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG). Na capital, foram realizados 256 mil diagnósticos, entre RT-PCR e sorológicos (“testes rápidos”), mas a Prefeitura não informa as porcentagens processadas em laboratórios públicos ou particulares.
Para o presidente da Central Única das Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG), Francis Henrique, o valor dos testes é um empecilho na avaliação da pandemia nas periferias. “Tenho contato com várias pessoas que estão com sintomas e foram ao posto de saúde, mas não foram testadas, por terem sintomas leves. E elas tinham vontade de fazer o particular, mas chega a custar R$ 250 reais. Na ponta do lápis, isso dá um quarto do salário mínimo, e a renda de muita gente diminuiu”, explica.
A epidemiologista Aline Dayrell, pesquisadora do Observatório, também vê uma relação entre poder aquisitivo e diagnóstico mais preciso. “Temos um problema de testagem. Possivelmente, há mais notificações entre a população de mais renda, porque mesmo os testes realizados pela rede privada são informados ao SUS”, ressalta.
No topo do ranking divulgado semanalmente pela Prefeitura, de bairros com mais casos confirmados em números absolutos, aparecem áreas de renda elevada como Buritis (Oeste), Castelo (Pampulha) e Lourdes (Centro-Sul). Porém, ao contrário do que ocorre com as internações por SRAG, a enorme maioria dos casos leves (Síndrome Gripal) não possui localização detalhada. Apenas 11.281 do total de 34.530 notificações tiveram o local de residência informado, tornando impossível saber se esses bairros são de fato aqueles com mais moradores contagiados.
Coletivos se articulam para atenuar os efeitos da pandemia
Com a pandemia, a Associação Arebeldia Cultural foi uma das organizações sociais que voltou as atenções para a doação de comida e máscaras em bairros da periferia, como o Taquaril e o próprio Alto Vera Cruz, onde está sediada. “Já distribuímos 28 mil cestas básicas. A fome chegou pesada e, sem comer, as pessoas não têm imunidade”, ressalta a fundadora Danusa Carvalho. O grupo também doa livros e contrata artistas locais para transmissões ao vivo como opção de entretenimento.
Outro projeto de apoio é o Periferia Viva, criado pela Associação Imagem Comunitária (AIC), que reúne cerca de 95 iniciativas em aglomerados espalhados por todo o Estado. “Há muitas famílias passando fome. Muitos moradores das periferias dependiam de expor produtos em feiras ou eram empregadas domésticas. Sem circulação na cidade, perderam emprego”, conta a coordenadora Emanuela São Pedro.
Negro F, 40, é morador da Pedreira Prado Lopes, na região Noroeste, e idealizador do projeto Vamos Juntos Contra a Covid-19, que distribui mantimentos a cerca de mil famílias da Pedreira e do Alto Vera Cruz. Segundo ele, as doações têm diminuído com o passar dos meses, mas a iniciativa segue aberta a contribuições. A Central Única das Favelas em Minas Gerais (Cufa-MG) também recebe doações.
A Prefeitura de Belo Horizonte informou ter inaugurado 23 novos Centros de Saúde Comunitários de Referência para enfrentamento à Covid-19, abarcando bairros como Alto Vera Cruz e Taquaril. A administração municipal também contabiliza a entrega de 2 milhões de máscaras artesanais em vilas e favelas, a pessoas em situação de rua e a pacientes de hemodiálise.
Além disso, havia distribuído até o dia 20 de agosto pouco mais de 1,2 milhão de cestas básicas para estudantes com matrícula na rede municipal e famílias em situação de vulnerabilidade social e econômica.
Um projeto anunciado pelo Governo do Estado em agosto promete repassar cerca de R$ 950 mil para que a Prefeitura hospede em hotéis os moradores de aglomerados diagnosticados com Covid-19. A administração municipal informou que ainda aguarda o repasse e trabalha nos detalhes operacionais da iniciativa.
Entenda a classificação
Aglomerados Subnormais, segundo a classificação adotada pelo IBGE, são grupos de habitações urbanas em terrenos caracterizados, em geral, por padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais (água, esgoto, coleta de lixo e energia, por exemplo), ausência de posse e localização em áreas restritas à ocupação ordenada, como morros e encostas.
“Um elemento a ser considerado é a natureza densa e/ou desordenada de boa parte dessas ocupações, o que limita a recomendação do isolamento social para o enfrentamento à pandemia [...] O padrão urbanístico também pode consistir em um limitador no caso de necessidade de acesso de ambulâncias para casos de maior gravidade”, exemplifica a nota técnica publicada pelo instituto juntamente com o mapeamento.
“No caso da Covid-19, é preciso considerar as características socioeconômicas e geográficas dessas áreas, como a falta ou o acesso limitado ao saneamento e à coleta de lixo, o custo dos produtos de higiene pessoal, o tipo de emprego (trabalho informal, empregos com impossibilidade de se trabalhar de casa e vínculos empregatícios mais frágeis, etc.), entre outras vulnerabilidades”, acrescenta a avaliação do IBGE.
Segundo o mapeamento do instituto, 11,5% das residências de Belo Horizonte estão localizadas em aglomerados. Por outro lado, esses locais concentram 17,3% dos casos graves e 15,8% dos óbitos por Covid-19 na capital, números que reforçam o adensamento e demais vulnerabilidades dessa parcela da população diante da pandemia.
É importante destacar que nem sempre a divisão administrativa da Prefeitura coincide com os limites das favelas e ocupações traçados pelo IBGE. Um exemplo é o bairro Trevo, na região da Pampulha, que engloba a Vila Trevo e a ocupação Dandara.
Metodologia da análise
Os dados referentes à Covid-19 utilizados na reportagem são dos boletins epidemiológicos publicados pela Prefeitura de Belo Horizonte. A reportagem solicitou dados mais detalhados via Lei de Acesso à Informação (LAI), como a evolução diária ou ao menos semanal dos casos por bairro, mas a administração municipal descumpriu os prazos legais e não respondeu o pedido até esta publicação.
A nomenclatura oficial, divisão por regionais, população estimada e malha geográfica de cada um dos bairros são da Prodabel (Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte).
A classificação oficial e malha geográfica dos Aglomerados Subnormais (ocupações, vilas e favelas), bem como a estimativa de domicílios e distâncias em relação às unidades de saúde são do IBGE.
Os bairros Belém, Guanabara, Vila Vera Cruz I, Bispo de Maura, Campus UFMG, Lagoa da Pampulha, Sumaré e Vila Vera Cruz II não possuem habitantes segundo as informações oficiais da Prefeitura. Os três primeiros, no entanto, foram registrados como local de residência em quatro casos (um no Belém, um no Guanabara e dois no Vila Vera Cruz I), além de um óbito (Belém). Para fins de padronização, esses registros foram transferidos arbitrariamente para os bairros Saudade, Goiânia e Vera Cruz, dentro dos quais eles estão respectivamente inseridos.
A legenda de cores do mapa está baseada nos quartis da taxa de casos graves por 100 mil habitantes. A mediana (155) divide os bairros em dois grupos iguais, onde a incidência é menor nos mais azuis e maior nos mais vermelhos. A escala termina no terceiro quartil (244), unificando o último grupo de bairros no tom mais escuro de vermelho.