Tráfico humano, trabalho análogo à escravidão, abuso sexual, cárcere privado e homicídio. Esses são alguns dos crimes que os advogados Greg Andrade e Andrezza Araújo acreditam que a família das crianças de 6 e 9 anos, encontradas desnutridas na última terça-feira (21 de fevereiro) tenham sido vítimas. A mãe das crianças está presa desde o começo do mês suspeita de ter cometido maus-tratos contra um dos filhos, de 4 anos, que morreu à época. 

"Estamos diante de um caso muito assombroso, muito mal contado e cheio de inconformidades. Acabamos de conversar com a senhora Kátia e digo: ela não é suspeita, ela é vítima", garante o defensor.

Os advogados se encontraram com a mulher no presídio de Vespasiano, na região Metropolitana de Belo Horizonte nesta sexta-feira (24 de fevereiro) e apresentaram outros dados que podem mudar o rumo da investigação.

"A Kátia relatou que há cerca de 1 ano e meio desembarcou com a família na rodoviária de Belo Horizonte com quatro filhos no colo e um na  barriga e com o marido. Foram aliciados por uma mulher, que se apresentou como Terezinha, oferecendo emprego. Ao chegarem ao local onde supostamente iriam viver, ela afirma que a família foi desmembrada e que ela passou a fazer trabalhos pesados, como capina de lotes, mesmo estando grávida, a ser presa em um quarto, receber comida através de um buraco em São Joaquim de Bicas e a ser vítima de violência sexual", relata Andrezza.  

A mulher, que também apresenta sinais de agressão física, perdeu cerca de 40kg desde que chegou à Belo Horizonte. "Ela conta que não se recorda dessas marcas que tem pelo corpo e acredita que era dopada, já que só comia o que levavam pra ela. Muitas vezes comia, adormecia e acordava em outro local com um homem em cima dela a violentando", diz.

Sem contato com os filhos. A mãe das crianças em cárcere contou ainda aos advogados que não vê os filhos há muitos meses e se emocionou ao saber que estavam vivos. "Ela só tinha contato com os filhos menores (o de 4 anos, que morreu, e as duas menores que estão sob custódia do Estado), e até desconfiava que os mais velhos tinham morrido. Ela está feliz que o irmão queria ficar com a guarda deles", conta o advogado mostrando uma carta que a mulher endereçou ao irmão. O homem veio de Goiás e está com as crianças no Hospital Municipal Odilon Behrens, onde os menores são assistidas. 

 

Suspeita trocou o nome da família

Outro ponto apresentado pelos advogados é uma suposta troca de nomes dos membros das famílias.
 
"A Kátia disse que a Terezinha (apontada como suspeita de cometer os crimes) orientou que eles se apresentassem com outros nomes. Os dois meninos que estão no hospital eram chamados de João e Gabriel, o pequeno que faleceu teve nome alterado para Vitor, uma das mais novas era chamada de Vitória e a caçula não havia recebido nome fictício ainda", disse.

A Terezinha também se identificaria como Serafina e um homem (também suspeito de encarcerar a família), chamado de Diego, por vezes, se apresentaria como Geraldo.

Entenda o caso

  • O resgate

As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.  

Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão. 

  • A denúncia

A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes. 

 

  • O local em que as crianças estavam

Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.

  • Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida

Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'",  detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.

A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.

  • Os responsáveis pelas crianças

A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.

O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou. 

  • Crianças resgatadas possuem duas irmãs que estão em abrigo

Duas meninas, de 1 e 2 anos, que são irmãs dos meninos resgatados na última terça-feira, dia 21 de fevereiro, no bairro Lagoinha, estão em um abrigo, sob a tutela do Estado. A informação foi confirmada ao TEMPO pelo Conselho Tutelar de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte. 

As meninas foram encaminhadas para unidade no dia 6 de fevereiro, depois que a mãe delas foi presa após levar um de seus cinco filhos, um garoto de 4 anos, com ferimentos para uma unidade hospitalar da cidade. O menino acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos que sofreu. No momento da prisão, a mulher teria omitido a existência dos dois filhos mais velhos, de 6 e 9 anos, resgatados na capital mineira. 

  • A investigação

A Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada e presa. O Ministério Público de Minas Gerais informou, por meio de nota, que o caso é investigado e que as informações estão sob sigilo.