Denúncia

Moradores de rua denunciam violência em abrigos da PBH: ‘O tráfico tá mandando’

Traficantes estariam colocando regras próprias dentro das instituições de apoio às pessoas que vivem nas ruas da capital; prefeitura nega cenário

Por Tatiana Lagôa e Pedro Nascimento
Publicado em 10 de julho de 2022 | 03:00
 
 
 
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Belo Horizonte tem quase 9.000 pessoas em situação de rua, segundo estimativa do Projeto Polos de Cidadania da UFMG, e 2.000 vagas nos 18 albergues, abrigos e casas de passagem mantidos pela prefeitura para que elas possam ter algum tipo de apoio. Mas, mesmo o número de vagas sendo mais de quatro vezes inferior à quantidade de pessoas, a média de ocupação nos locais onde há possibilidade de dormir está em 85%. Ou seja, embora haja espaço com camas nessas instituições, mais de 7.000 pessoas optam por dormir ao relento, nas calçadas. Os motivos para essa "escolha" são vários, mas um deles preocupa: “Lá dentro (dos abrigos) o tráfico está mandando, e quem trabalha no tráfico tem privilégios”, denuncia um homem em situação de rua que, por medo de represálias, será identificado apenas como Luciano.

Luciano saiu de outro Estado e há dois meses fez das ruas de Belo Horizonte o próprio lar. Nesse pouco tempo em que vive na capital mineira, ele já coleciona casos de perrengue e de medo. “Estou enfrentando dificuldades. Eu só consigo acessar o albergue para comer e tomar um banho. Eu tô andando sujo porque, na lavanderia, só os ‘maiorial’ que entram. Eles entram e saem na hora que querem”, relata, referindo-se ao Albergue Tia Branca I, que fica no bairro Floresta, na região Leste de BH. 

O espaço, voltado exclusivamente para o público masculino, tem 80 vagas e uma ocupação média de 87%, segundo dados da prefeitura. Na denúncia de Luciano, o repasse de drogas ocorreria dentro e fora do abrigo. “Um dos traficantes de lá entra e sai a hora que quer, faz o que quer, bate e oprime as pessoas. Os caras vendem dentro dos quartos. Às vezes você tá tentando dormir e não consegue porque o cara tá vendendo droga e toda hora chega um chamando. A situação lá dentro tá crítica”, conta. 

A reportagem esteve na porta do abrigo em um dia de semana pela manhã e confirmou o cenário apresentado por Luciano. De fato, há um entra e sai deliberado na instituição, sendo que uma parte dessas pessoas que estavam circulando por lá estava em um grupo com livre consumo de drogas na porta. Toda a ação ocorria a poucos metros de uma delegacia da Polícia Civil e à vista dos guardas municipais. No momento da passagem da reportagem pelo local, inclusive, havia um guarda na porta da instituição, que não esboçava nenhum tipo de reação com a movimentação na área.   

Questionada sobre essa situação, a Polícia Civil disse que no dia 2 de julho deu início a uma operação visando à repressão ao tráfico de drogas no bairro Floresta. “A ação teve como objetivo inibir o tráfico de entorpecentes na região. A investigação segue em andamento”, diz a PC em nota, sem especificar nada sobre o abrigo.

A Prefeitura de Belo Horizonte disse, também em nota, que o abrigo Tia Branca encontra-se em processo de reordenamento, com uma previsão de que até início de 2023 as vagas sejam divididas entre três unidades menores, para qualificar o atendimento. “O prédio onde hoje funciona o Tia Branca ficará destinado ao Centro Pop Leste e contará com espaços para atendimentos intersetoriais e de outros órgãos do sistema de garantia de direitos”, explicou.

Outros casos

Mas o problema não se restringe ao abrigo no bairro Floresta. Várias outras pessoas em situação de rua ouvidas pela reportagem relatam casos de violência nos locais que deveriam ser de acolhimento. Quem denuncia o problema nos abrigos da cidade tem medo de represálias e, por isso, todos os nomes apresentados ao longo da reportagem são fictícios. “Na rua a gente fica à própria sorte. Se um dia eu aparecer morto, não faz a menor diferença para ninguém, e o que eu mais temo é pela minha vida”, disse um dos denunciantes.

Vivendo há mais de 40 anos nas ruas de Belo Horizonte, Eduardo – que teve a identidade preservada a pedido – conta que já dormiu debaixo de muitas marquises na cidade antes de estabelecer “endereço fixo” em uma praça na região Centro-Sul da capital. Apesar de precário, o espaço onde o morador improvisou um fogão de pedra junto ao meio-fio e um varal estendido entre duas árvores ainda é, segundo ele, mais seguro do que o abrigo oferecido pela prefeitura. “Ali não é um ambiente seguro para quem não quer ficar perto de coisa errada”, alega.

O período mais recente em um albergue foi no início da pandemia, em 2020, no Tia Branca I, na região Leste da cidade. Em uma semana nessa última passagem, Eduardo confirma ter visto a atuação do tráfico de drogas crescer a ponto de prejudicar o funcionamento do espaço. “Lá eu vi tráfico de maconha, de cocaína, de crack. Tudo dentro dos quartos. Já teve vez de ser impossível conseguir dormir, pois toda hora é um entra e sai de gente querendo comprar”, detalha.

O relato de Eduardo não é único. Daniel – outro morador identificado por nome fictício – esteve por dois anos no Tia Branca até deixar o albergue, há cerca de dois meses. No local, ele conta ter convivido com uma espécie de “milícia” que se apoderou do equipamento público a ponto de expulsar quem não faz parte do movimento. “Ali a gente teme pela segurança o tempo todo. É uma espécie de milícia que, quando se mexe com um, se mexe com todo mundo”, conta.

Enquanto lidava com o alcoolismo, Daniel viu de tudo no Tia Branca, inclusive a violência dessa quadrilha composta por pessoas em situação de rua que, segundo ele, foram coagidas por traficantes. “Eles agem como se fossem donos do albergue. Você não toma banho, não dorme, não vê uma televisão enquanto eles não permitem, senão te ameaçam de morte, de te procurar na rua durante o dia”, relata.

O cenário, associado a outras questões, tem feito com que muitas pessoas prefiram dormir na rua e enfrentar o frio a ficar nos abrigos. “É difícil conviver em um ambiente de violência. Ainda tem algumas questões que complicam, como o fato de não terem camas reservadas, o que beneficia a proliferação de doenças. Isso sem contar as muitas situações de desentendimentos e agressões dentro dos abrigos”, diz a coordenadora da Pastoral de Rua da Arquidiocese, Claudenice Rodrigues Lopes. 

A assessora da Pastoral Nacional do Povo da Rua, Cristina Bove, reforça que nem todos os moradores de rua têm problemas com uso de álcool e outras drogas e que é preciso relativizar ao analisar essa denúncia. “Não podemos criminalizar ainda mais a população em situação de rua. Existem muitas pessoas que não concordam com essa violência e são vitimadas por ela. Nesse cenário de desemprego temos famílias inteiras indo para as ruas e sem ter para onde levar seus filhos. São violentados permanentemente e não podem ser estigmatizados”, afirma. 

Prefeitura de BH nega tráfico em abrigos

A prefeitura nega a situação. Em nota, ela diz que “não há ocorrências de tráfico de drogas no Albergue Tia Branca. Os usuários, inclusive, respeitam as regras e buscam sempre manter o bom funcionamento do local, como um tratado coletivo. A unidade tem os horários e atividades bem-definidos, e, durante o período de pernoite, cada acolhido tem o seu espaço para dormitório. A Guarda Municipal mantém na unidade a presença fixa de dois agentes 24 horas por dia, coibindo a prática de qualquer ilegalidade no ambiente. As demais unidades são alvo de rondas preventivas rotineiras, durante todos os dias da semana, podendo os guardas municipais ser acionados a qualquer momento, quando houver necessidade”. O Executivo garante ainda que a Guarda Civil Municipal atua no patrulhamento preventivo dos equipamentos da prefeitura. 

Questionada sobre os casos citados, a Guarda Municipal disse, também em nota, que “nunca houve registro de qualquer ocorrência de tráfico de drogas feita pela Guarda Municipal no Albergue Tia Branca. No local, a Guarda Municipal mantém a presença fixa de dois agentes, 24 horas por dia, coibindo a prática de qualquer ilegalidade no ambiente. Essa permanência em tempo integral é garantida por meio do revezamento das duplas, a cada 12 horas (ou seja, os agentes trabalham em escalas, folgando 36 horas, após cada turno de 12 horas de trabalho)”.

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