Tragédia

Tragédia de Brumadinho: luto por vidas em pedaços

Há dois anos, lama de mineradora engolia sonhos e a história de 272 ‘joias’; “Foram sepultados vivos pela Vale, diz pai de uma das 11 vítimas ainda não localizadas

Por Lucas Morais
Publicado em 25 de janeiro de 2021 | 03:00
 
 
 
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De semblante marcado por dor e angústia, Arlete Gonçala de Souza Silva, 58, vestia uma camisa com estampa da foto do filho, Vagner Nascimento da Silva, quando recebeu a reportagem em casa, no alto de Brumadinho, na região metropolitana. Na imagem da roupa, ele sorri – como vivia fazendo, lembra ela. Apesar da distância entre o imóvel e a área atingida pelo rompimento da barragem da Vale, há dois anos, o mar de lama deixou uma ferida nessa família – e em muitas outras – que não vai cicatrizar. O TEMPO publica, a partir de hoje, uma série de reportagens sobre a situação no local.

No sofá da sala simples, Arlete conta que, do momento em que acorda até a hora de dormir, as memórias do dia 25 de janeiro de 2019 não saem da cabeça. Pouco antes das 7h, Vagner, que era operador de equipamentos na Vale havia 15 anos, deixava a residência onde vivia com a mulher e a filha, nos fundos do terreno, para mais uma jornada de trabalho na mina de Córrego do Feijão. “Vi ele saindo de moto”, recorda. Na data, Vaguinho, como é chamado por todos, faria exame de saúde ocupacional com a médica Marcelle Porto Cangussu. No entanto, os dois acabaram morrendo. 

A última mensagem enviada do celular foi às 11h02. “Ele tinha contado que ia passar no consultório e depois almoçar”, relata. Pouco mais de uma hora depois, às 12h38, a estrutura de uma das barragens da mina entrou em colapso e, em poucos segundos, destruiu a principal área das instalações da Vale. O refeitório foi totalmente soterrado. “Eu trabalhava em uma loja, e as pessoas chegaram dizendo do rompimento, que todos que estavam no restaurante tinham morrido. Liguei para o celular dele, e deu na caixa postal”, afirma Arlete.

Para ela, se Vagner não tivesse feito o exame na data, teria sobrevivido. “Ele trabalhava com máquina motoniveladora em uma área acima da barragem. Quem estava lá viu tudo descendo e não morreu”, relata. Até hoje, a dona de casa não conseguiu fazer um velório para o filho. 

Enquanto as buscas continuam – 11 vítimas não tinham sido localizadas até o fechamento desta edição –, Arlete e o marido, Alderico Rodrigues da Silva, 62, preferiram esperar mais a enterrar um segmento, dilema de outras famílias. “Desde o início, as pessoas estavam enterrando pedaços, poucos foram os corpos inteiros. Quando não tiver mais a operação, eu busco o que tiver. Eles já foram sepultados vivos pela Vale, ninguém teve velório digno”, argumenta. 

Para Alderico, a casa que era sinônimo de alegria se tornou um grande cemitério. “Perdi um diamante, de quem nunca reclamei. Aqui era um lugar vivo”, diz. 

Reidentificar fragmentos é reviver drama 

Professora, Natália de Oliveira, 49, é irmã de Lecilda de Oliveira, analista de operação que atuava na Vale havia quase 30 anos e uma das joias ainda não encontradas. “Hoje talvez possa ser o dia”, espera ela, para quem cada minuto de operação é crucial. 

Além dessa angústia, as famílias ainda lidam com outro desafio: as reidentificações. Desde o desastre, o IML recebeu quase 900 casos, entre corpos e fragmentos. “Há uma família em que o que foi encontrado na lama era tão pouco que foi gasto para extrair o DNA e ter a certidão de óbito. Não tinham o que colocar no caixão. É muito doloroso”, lamenta.  

“A força da lama deformou tudo”

Além de destruir o centro administrativo da Vale, a lama de rejeitos levou poucos minutos para transformar casas do bairro Parque da Cachoeira e uma pousada inteira em pó. A violência do desastre dilacerou 272 vidas e sonhos – órgãos oficiais contabilizam 270, mas a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão fez esse acréscimo pelo fato de duas grávidas terem morrido no desastre. Tenente do Corpo de Bombeiros, Pedro Aihara explica que mais de 10 milhões de metros cúbicos de rejeitos vazaram após o rompimento. “Imagine o efeito disso no corpo humano”, lembra. 

Na noite de 5 de março de 2019, a costureira Anastácia do Carmo Silva, 51, recebeu uma ligação do Instituto Médico-Legal (IML). Filho dela, Cleiton Luiz Moreira Silva, 29, estava entre as centenas de funcionários da Vale ainda não localizados. “É aquele telefonema que você está esperando, mas não quer. Fui fazer a liberação, só que lá no IML não deixei ninguém olhar. Não tinha nada do meu filho. A força da lama deformou tudo. É pavoroso chegar ao IML, ver dois sacos pretos e saber que seu filho está ali”, detalha. Parte do corpo foi localizada a 6 km da oficina da mina em que ele atuava. 

Anastácia só conseguiu voltar a trabalhar em 2020: “Passei a ser amarga, não consigo sair, parece que fiz 80 anos”. A força que resta, segundo ela, vem do outro filho que ela tem.
 

 

 

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