A vida de Ângela

UMA VIDA de 55 anos de dedicação ao outro

Ângela foi doméstica, cuidou de sítio, de idosos e de crianças... até que, no fim, precisou ser cuidada

Por Joana Suarez
Publicado em 28 de julho de 2016 | 03:00
 
 
 
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Sempre que chegávamos para visitá-la, Ângela Batista Amaral, 55, estava no sofá, meio deitada, meio sentada. Pequenina e magrinha, pesando cerca de 30 kg, não preenchia metade do estofado. Não abria mão de ficar arrumada, cheirosa, com um lenço bonito escondendo os cabelos crespos, curtos e falhados após inúmeras sessões de quimioterapia. Aguardava-nos ansiosamente – o combinado era às quintas-feiras, mas na segunda já começava a perguntar para a filha quantos dias faltavam e mandava preparar o lanche. Ao chegarmos perto da porta, sempre aberta, Ângela já lançava um sorriso doce, que repuxava o nariz preso ao tubo de oxigênio, e nos acolhia com um abraço afável, apesar do medo de machucar as feridas do tumor no seio direito. “Vocês demoraram demais”, dizia, brincando, com sua vozinha fraca em meio ao barulho da sala cheia de filhas e netos. “Tenho vontade de conversar alto, não consigo mais”.

Até os 42 anos, Ângela viveu no aglomerado Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte, de onde guardava fortes lembranças de tempos difíceis, mas felizes. “Já teve vez de eu ir a lugar comunitário pegar sopa porque não tinha o que comer. Era muita luta, mas uma época boa, a família era mais unida”, recordava, dizendo que queria ser velada no Cabana. “Eu vim foi de lá, meu destino é lá. Quem dera eu pudesse escolher”. Depois que adoeceu, ficou tempos sem voltar ao bairro.

Doze anos antes de morrer – praticamente o mesmo tempo pelo qual lutou contra o câncer –, saiu do Cabana ao receber do governo um apartamento de 40 m² no conjunto Águas Claras, na região do Barreiro, porque morava em área de risco. Nos “predinhos”, como dizem os moradores, Ângela também era querida por todos como uma mãe. Com seu jeito de “adotar” as pessoas, já na sétima das 27 visitas que fizemos, ela incluiu a mim e a fotógrafa Fernanda Carvalho no seu rol de “crias do coração”.

Temos um grande pesar de não tê-la conhecido antes de ela enfrentar sua fase mais fraca, embora tenha projetado cada cena narrada dessa época, como se estivéssemos lá. Dizem que ela era forte, mais encorpada, um tanto brava, mandona, mas bem-humorada e extremamente generosa. Que gritava muito, antes de a rouquidão chegar junto com a falta de ar quando o câncer havia atingido o pulmão. “Escutei minha voz em um áudio que mandei no celular e nem acreditei que era minha”, contou. Que, se não estava em casa fazendo comida, estava do lado de fora da casa cuidando das plantas no corredor, varrendo, conversando com a vizinha, sempre ativa, procurando algo a fazer.

Ângela começou a trabalhar como empregada doméstica aos 15 anos, foi caseira de sítios com o marido, cuidou de idosos, manteve uma creche improvisada em casa para ajudar a criar os filhos dos vizinhos. Viveu para cuidar do outro por mais de 30 anos. Até que, no fim da vida, recebeu os cuidados que mais precisou. Em seus últimos nove meses, foi atendida pela equipe paliativista do Hospital Alberto Cavalcanti, que fez com que todos a sua volta, inclusive a equipe de reportagem, preocupassem-se em fazer com que cada instante dela significasse muito.

Passado

Não poder mais dedicar-se ao outro amargurava Ângela. Como teria levado esse golpe da vida, depois de tanto cuidar? Ela mal conseguia aguentar-se de pé para ir ao banheiro, mas lembrar-se de tudo que havia feito até seu meio século de idade lhe enchia o peito, já sem fôlego. “Gostava de trabalhar em casa que tinha criança. Eles (filhos dos patrões) vinham dormir comigo no cantinho da minha cama, no quarto das empregadas”, contou, orgulhando-se de um carinho que se estendeu até 20 anos depois de deixar o emprego.

Ângela só parou de trabalhar quando descobriu que estava doente e já não tinha forças para carregar o peso da senhora de que cuidava. “Era muito pesado. Mas sempre trabalhei, tomava conta de sítio. Com um barrigão de oito meses, ainda pegava na enxada, eu e Divino (marido)”, contou.

Com Valdivino Francisco Amaral, 53, Ângela teve quatro filhas, hoje com 18, 22, 24 e 26 anos. Completaram 26 anos de casados seis meses antes de ela morrer. “Fomos muito felizes, por muitos anos, depois foi esfriando. Apesar de tudo, eu gosto muito dele, é o pai das minhas quatro princesas. Até hoje ele fala que me ama, mas eu sou fria demais”, confessou, lembrando que já fazia seis anos que ela e Divino não dormiam mais juntos. Assumiu que a doença levou um pouco de suas vontades. “O povo fala que homem faz falta; para mim, não”, revelou. Até o café, antes um vício, passou a ter um gosto ruim.

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