O mais interessante do movimento #MeToo é seu efeito cascata. Mulheres (e homens) que, por meio dos relatos alheios, se dão conta dos abusos e assédios que sofreram, sem muitas vezes nem ter percebido – e, encorajando-se, decidem compartilhar, exorcizar, expor. Revisitar essas violências, porém, não é nada fácil e pode gerar novos traumas, dores, conflitos. E é por isso que cabe a cada um definir até onde se dispõe a ir, se quer expor sua história ou não, em que escala – e o mais importante: como sobreviver num mundo em que não só sua verdade, mas a de todas as pessoas, está exposta, e com a indignação e angústia que isso causa.
São essas questões que Jessica Jones (Krysten Ritter) é obrigada a encarar na segunda temporada de sua série, que estreia hoje na Netflix. Mesmo filmados antes da eclosão do escândalo Weinstein e seus desdobramentos, os episódios continuam a narrativa do primeiro ano, sobre uma mulher buscando superar o abuso de que foi vítima. E se a temporada anterior era sobre como escapar de um relacionamento abusivo, esta nova mostra que sair dele, e literalmente matar seu agressor, não significa que está tudo resolvido (a abertura do primeiro episódio acha uma forma muito engraçada de ilustrar isso) – pelo contrário.
Jessica precisa descobrir o que fazer com – e como controlar – a raiva por ter sido violentada. Como não culpar e descontar em todo mundo. Aprender que é possível confiar nas pessoas de novo – porque não se sobrevive a algo assim sozinha. Em suma: não deixar que o abuso defina quem ela é e aceitar que é possível uma vida melhor, mais saudável, “normal”, depois dele.
E para superar a ideia de que é o mero resultado das violências que sofreu, a heroína é encorajada pela amiga Trish (Rachael Taylor) a encarar e entender seu “primeiro abuso”: o experimento do laboratório IGH que deu origem a seus poderes. Fazer isso, porém, significa abrir uma caixa de Pandora, revisitando o acidente que matou sua família. Ou, na metáfora visual recorrente da temporada, abrir uma porta sem saber o que a espera lá dentro – quebrar o vidro de um aquário enorme e lidar com tudo que ele despejar na sua direção. Decidir se está pronta e disposta a fazer esse mergulho no passado é o grande desafio de Jessica nos cinco (dos 13) episódios desta temporada a que o Magazine teve acesso – “com grandes poderes, vem grande sofrimento mental”, nas palavras de um dos personagens.
E é exatamente isso que torna a protagonista tão interessante: ela é uma vítima e, ao mesmo tempo, sua própria heroína. Algo que se estende às outras personagens femininas da série da criadora Melissa Rosenberg: Trish e a advogada Jeri (Carrie-Anne Moss) são mulheres que se recusam a esperar que alguém resolva seus problemas e, na tentativa de solucioná-los elas mesmas, assim como Jessica, nem sempre fazem as escolhas mais acertadas. Uma premissa que se manifesta numa daquelas cenas deliciosas em que o seriado subverte os filmes de super-herói: Jessica manda o novo namoradinho inglês de Trish embo<CW6>ra (para o mesmo limbo onde as mocinhas ficam nas cenas de ação), enquanto ela vai ali salvar o mundo.
O grande porém é que, se a narrativa do relacionamento abusivo entre a protagonista e Kilgrave já era bem-delineado desde o início na primeira temporada, esse subtexto do novo ano demora um pouco mais a ficar claro. Com isso, os novos episódios são mais truncados e menos viciantes – e só começam a engrenar quando o verdadeiro inimigo vai se delineando.
E esse é o grande vácuo do início da segunda temporada: um vilão à altura de Kilgrave. O talento do ator David Tennant e sua química com Krysten fazem falta. Um substituto eventualmente aparece, mas até o quinto episódio ainda não foi desenvolvido o bastante para isso.
No mais, a narração em off continua pobre e desnecessária. Os clientes da Codinome Investigações são cada vez mais escassos (com a própria Jessica sendo sua principal cliente). E os personagens masculinos continuam universalmente detestáveis (com exceção do ex-junkie Malcolm). Entre os novos, estão um vizinho latino intolerante com “pessoas super” e um detetive asiático, que não aceita que uma mulher seja melhor que ele, quer tirar Jessica do mercado e não aceita “não” como resposta (“que estuprador da sua parte” é a resposta da heroína).
Esse humor seco, irreverente, alcoólatra e sem o mínimo de paciência da protagonista continua o grande charme da série – e o que faz dela um dos produtos mais originais da Marvel (e se você, como eu, não viu nenhum outro dos seriados dos Defensores, não se preocupe: vai acompanhar a história perfeitamente). Jessica Jones pode até precisar da ajuda dos outros para superar seus traumas, mas na ausência de Kilgrave mostra que não precisa de nenhum homem para carregar sua própria série.