Na história da arte, há várias mulheres que tiveram seus trabalhos silenciados e, por isso, acabaram relegadas ao esquecimento. A pintora sueca Hilma af Klint (1862- 1944), por exemplo, permaneceu uma incógnita até a década de 80, quando parte do conjunto considerada mais importante de sua produção artística foi exibido em uma mostra coletiva em Los Angeles (EUA).
Contudo, sua trajetória é tão peculiar que demanda um olhar individualizado e menos generalista. Tal é a intenção almejada por dois projetos que revisitam o legado de Hilma. O mais recente é a biografia “As Cores da Alma: A Vida de Hilma af Klint”, escrito pela artista plástica e pesquisadora mineira Luciana Pinheiro Ventre. O livro, resultado de dez anos de pesquisa, é o primeiro dessa natureza em língua portuguesa dedicado à artista sueca e será lançado nesta quarta-feira (13), no Centro Cultural Minas Tênis Clube.
A outra iniciativa é a exposição “Hilma af Klint: Mundos Possíveis”, que é uma montagem inédita na América Latina e tem curadoria de Jochen Volz, diretor geral da Pinacoteca de São Paulo, onde podem ser vistas 130 telas de Hilma até 16 de julho. Luciana é também quem vai assinar a cronologia do catálogo bilíngue preparado pela Pinacoteca, o que deverá ampliar o volume de publicações sobre a artista, que mesclava pensamentos sobre ciência, espiritualidade e arte em suas criações.
“Hilma dizia que o trabalho dela não podia ser percebido sem o conteúdo esotérico, uma vez que suas obras eram molduras para um pensamento espiritual que elas continham”, pontua Luciana, que viajou, em 2014 e 2015, até a Noruega, a Suécia e a Suíça a fim de refazer os caminhos palmilhados pela artista nos últimos 20 anos de sua vida. A autora conta que o primeiro contato com o legado de Hilma foi em 2008, quando visitou uma exposição sobre abstracionistas no Centro Georges Pompidou, em Paris. Lá ela descobriu pinturas da artista que eram desconhecidas havia mais de cinco décadas.
“Eu fiquei muito curiosa, porque sou artista e biógrafa, e, quando comecei a pesquisar sobre Hilma, notei que havia pouquíssima coisa. Foi só a partir de 2011 que começaram a chegar mais informações pela internet, e havia pessoas que estavam escrevendo teses centradas nela. Mas praticamente tudo em sueco”, conta Luciana, que descobriu, além das pinturas, a existência de mais de 26 mil páginas escritas à mão por Hilma sobre seu ofício.
“Eu me encontrei com o curador dela, Ulf Wagner, e ele me passou uma bibliografia que só existia em sebo, produzida por dois biógrafos que haviam lido todos os 120 diários dela e produziram uma espécie de tratado a partir do conteúdo deles. Os títulos são herméticos e o texto, muito esotérico”, diz Luciana.
Foi a partir de 2013, com uma retrospectiva realizada pelo Museu de Arte Moderna de Estocolmo – que passou por Alemanha, Espanha, Dinamarca, Noruega e Estônia –, que as obras de Hilma começaram a atrair maior interesse. Chamou atenção o fato de suas telas, em especial as da série “As Dez Maiores” (1907), trazerem composições não figurativas anteriores às de nomes contemporâneos de Hilma e hoje consagrados como grandes nomes do abstracionismo, como Wassily Kandinsky (1866-1944), Piet Mondrian (1872-1944) e Kazimir Malevich (1879-1935).
“De fato, pela cronologia, Hilma foi a primeira a ter uma obra abstrata no mundo. Porém, ela não tinha intenção de fazer parte de nenhum movimento como Kandinsky e Mondrian faziam, embora ela tenha estudado na universidade onde aconteceu o estopim do segmento abstrato na Escandinávia”, completa Luciana.
Universalidade. O curador Jochen Volz pensa que o termo “abstrato” não se aplica às criações de Hilma. “Isso sequer interessava a ela. Sua pesquisa aproximava-se mais de uma ideia de universalidade, de uma linguagem que representa a busca por uma verdade espiritual. Isso ela levou até a abstração em alguns momentos, mas em outros ela tangenciou a figuração. Ela também criou símbolos e códigos e pensava em termos de geometria, o que tinha papel central em suas pinturas”, explica Jochen.
Ao longo de sua vida, Hilma nutriu-se de ensinamentos de vários movimentos espirituais, como o rosa-Cruz, a teosofia e a antroposofia, fundada pelo filósofo, educador e artista austríaco Rudolf Steiner (1861- 1925). Este, inclusive, foi quem sugeriu a Hilma que ela guardasse suas obras por 50 anos, para que, depois disso, elas pudessem vir à tona.
“Muitos críticos de arte comentaram a atitude de Steiner, dizendo que ele impediu Hilma de expor o seu trabalho. Mas eu acho que houve uma distorção do que ele propunha. A obra de Hilma atravessou duas guerras, e, talvez, se ela tivesse se exposto antes, todo esse projeto poderia não ter sobrevivido. Ela acolheu o que Steiner disse, porque ela estudava teosofia, depois tornou-se membro da Sociedade Antroposófica, e não tinha pretensão de fazer parte de nenhum movimento. Hilma foi uma cientista espiritual que era artista”, afirma Luciana.