A expressão “poesia marginal” surgiu na década de 70 e, de lá pra cá, tem se vinculado a autores que ousam palmilhar novos caminhos, indo além das referências atreladas ao cânone e propondo formas alternativas de circulação dos seus escritos. Foi assim que aquela primeira geração valeu-se do mimeógrafo, entre outros meios, para multiplicar o alcance dos seus versos, e hoje muitos usufruem das possibilidades de divulgação inauguradas com a internet para chegar até os leitores.
Um dos nomes representativos desse primeiro grupo é o poeta Chacal, que será um dos convidados do Festival de Literatura Marginal (Felim), que estreia nesta quinta-feira com uma série de encontros e palestras, a serem realizados em escolas municipais de Belo Horizonte localizadas no bairro Alto Vera Cruz, no aglomerado da Serra e na região do Barreiro.
A iniciativa, idealizada pelo rapper Flávio Renegado, vai reunir também os poetas Pieta Poeta (BH), Bere MC (BH), João Paiva (BH), Mel Duarte (SP), Leticia Brito (RJ) e Nelson Maka (BA), que vão se apresentar ao lado de Chacal na abertura. Renegado explica que o evento, concebido em torno da homenagem à escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), pretende aproximar autores de origens diversas, sendo alguns atuantes no rap.
“Belo Horizonte tem se destacado muito nesse novo momento da literatura marginal. Estou falando principalmente dessa juventude que tem ocupado os espaços públicos com ações como o Duelo de MCs e que leva a poesia para um público mais amplo e de maneira diversificada. Por causa do meu trabalho, eu tive oportunidade de conhecer essas e outras pessoas, que têm uma experiência muito bacana, e acredito que podem ser referências para esses jovens que vão participar do Felim”, pontua o artista.
Um dos momentos de destaque da programação será o Sarau do Conhecimento, em que os poetas das comunidades onde os encontros serão promovidos vão poder disputar e concorrer aos prêmios de R$ 1.500, R$ 1.000 e R$ 700 – concedidos, respectivamente, para primeiro, segundo e terceiro lugar. Eles também vão receber os mesmos kits de livros que serão distribuídos para as escolas.
O objetivo do certame, de acordo com Renegado, é fomentar a criação artística. “O Felim é um projeto que está sendo construído, e nós queremos já, desde a primeira edição, mostrar que é possível sobreviver da atividade artística. Nós queremos apoiar e incentivar essas pessoas, mostrar a elas que é viável seguir adiante e quebrar fronteiras com seu próprio trabalho”, diz o idealizador do evento.
Gerações
Para o poeta Chacal, a oportunidade será também de estar diante de nomes que estão trazendo outros temas para o universo da poesia marginal. “A nossa poesia era um pouco mais universitária, branca, classe média e focada na poesia mesmo. Falávamos da cultura pop, claro, do cenário urbano, daquela coisa sexo, drogas e rock’n’roll e toda aquela lisergia, mas a atual está mais focada nos problemas socioculturais, econômicos, criando algo que é muito forte. Acho legal buscarmos a partir disso os traços e as diferenças entre essas duas gerações”, comenta Chacal.
A seu ver, uma das principais semelhanças entre os dois grupos é a maneira como o corpo e a fala são reintroduzidos no contexto da poesia. “Esses dois elementos eram algo que estava meio esquecido na década de 70. Quando vi o poeta Allen Ginsberg (1926-1997) falando seus poemas em Londres, em 1972, eu pensei: é isso o que eu quero ser. Um dia vou falar poesia assim. Não era rap, não tinha música nem nada, mas era uma poesia completamente anárquica, em que entravam umas risadas e, de repente, uma sanfoninha”, recorda Chacal.
Ações inspiradas nessa atitude, conta ele, atraíram quem não era da poesia nem entrava em livrarias. “Nós abrimos uma porta, que democratizou a poesia. Hoje, nós temos o jovem de periferia fazendo o mesmo sem pedir licença. Nós metemos o pé na porta lá atrás, e agora tem outra geração metendo o pé na porta também em um espaço que sempre foi muito elitizado, muito aburguesado”, conclui Chacal.
As várias facetas de Carolina Maria de Jesus
Durante o Festival de Literatura Marginal, a professora e pesquisadora Dalva Soares vai apresentar a palestra “Diários e memórias: Carolina Maria de Jesus” nas escolas municipais Professor Mello Cançado (Barreiro), Senador Levindo Coelho (Serra) e Israel Pinheiro (Alto Vera Cruz), respectivamente, nos dias 21, 22 e 23. A ideia, antecipa Dalva, é ampliar o olhar para a vida e a obra de Carolina, abarcando outras facetas menos difundidas da trajetória da escritora mineira, que se tornou mais conhecida pelo título “Quarto de Despejo” (1960).
“O objetivo é ir além desse livro. Carolina deixou mais de 5.000 páginas manuscritas que ainda não foram publicadas. Ela gravou um LP, tocava violão, compunha sambas e marchinhas. Então, era uma artista completa. Ela também foi dramaturga e escreveu muitas peças de teatro, além de diversas crônicas e contos”, lista Dalva.
A professora conta que passou a conhecer mais sobre a vida da autora ao ler o “Diário de Bitita”, que curiosamente foi publicado primeiro em francês para depois ganhar uma edição brasileira. “Desde então, ela se tornou uma inspiração para mim. Eu também escrevo, mas, ao contrário de Carolina, eu tenho muita dificuldade em me assumir escritora. Carolina nunca teve esse problema. Apesar de ser uma mulher da favela, ela tinha essa percepção de que era uma escritora”, sublinha Dalva.
Além disso, Carolina, para a palestrante, continua a ser um exemplo de força, e sua obra merece ser lida como qualquer outra literatura que se entende como universal. “Ela trata de questões universais, além dos aspectos ligados à falta material. Ela nos deixa também uma lição. Virginia Woolf (1882-1941), em ‘Um Teto Todo Seu’, diz que toda mulher precisaria de 500 mil libras por ano e um teto todo seu para ser escritora. Mas Carolina, apesar de todas as dificuldades, nunca deixou de escrever, e, quando não tinha lápis, usava carvão e papel de pão. Eu me sinto mais próxima de Carolina, e, quando estou esgotada, é nela que me amparo”, afirma Dalva.
Programação
Festival de Literatura Marginal
Dia 21
A partir das 19h, na Escola Municipal Professor Mello Cançado (rua das Petúnias, 2.058, Barreiro).
Dia 22
A partir das 14h, na Escola Municipal Senador Levindo Coelho (rua Caraça, 910, Serra).
Dia 23
A partir das 16h, na Escola Municipal Israel Pinheiro (rua Desembargador Bráulio, 1147, Alto Vera Cruz).
Dia 24
A partir das 14h, na Arebeldia (rua Desembargador Bráulio, 167, Alto Vera Cruz).
Dia 25
Às 19h, na Escola Municipal Professor Mello Cançado (rua das Petúnias, 2.058, Barreiro).
Dia 26
Às 14h, na Escola Muncipal Senador Levindo Coelho (rua Caraça, 910, Serra).
Dia 27
Às 19h, na Escola Municipal Israel Pinheiro (rua Desembargador Bráulio, 1147, Alto Vera Cruz).
Entrada gratuita