Os quatro primeiros livros do poeta e professor Andityas Matos– "Lentus in umbra" (2002), "OS enCANTOS" ( 2003), "FOMEFORTE" (2005) e "Auroras consurgem" (2010) – estavam, como ele mesmo define, calçados basicamente sobre dois pilares: o amor e a linguagem. A partir de 2019, no entanto, uma nova dimensão da poesia se impôs para o mineiro, "ligando-se mais à crítica social, à revolta, à denúncia do caráter absurdo dos tempos que vivemos, com negacionistas, pandemias, fake news, canalhice política generalizada, racismo, homofobismo e machismo levados ao extremo etc". Depois de quase dez anos de silêncio poético, naquele ano veio à luz "Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas" (Urutau). No ano seguinte, foi a vez de "Poemas para a noite dos mortos-vivos" (Urutau). Nesta quinta-feira, Andityas vai se sentar em uma das mesas da Livraria Quixote para autografar "Poemas póstumos: fantasias para rapazes e moças durante o genocídio" (Kotter), novo representante desta lavra voltada à crítica social.
Antes de avançar no território da nova obra, vale dizer que o hiato no mercado editorial não o fez se calar diante de situações que o indignaram. "Sempre denunciei essas realidades em meus textos acadêmicos e aulas, já que sou professor de Filosofia do Direito na UFMG. Mas ao retomar o verso, o fiz não mais para fazer cantigas de amor ou de amigo, mas sim cantigas de escárnio e maldizer, usando expressões aplicáveis aos trovadores medievais".
"Poemas póstumos" foi escrito no final de 2020 e em 2021, e o próprio Andityas reconhece que, de muitas maneiras, é o mais radical dos seus livros de revolta. "É que nele assumo ficcionalmente que estou morto – daí o título –, e, por isso, posso falar tudo que quiser sem medo de ser julgado, como nos poemas 'retrospectiva até agora', 'the gente art, 'mágoa' e outros. Trata-se, evidentemente, de um velho artifício literário já usado, por exemplo, por Machado de Assis", salienta, acrescentando ser uma experiência particularmente interessante escrever “estando morto". "Pois se percebe com certa paz a pequenez de muitas coisas, a dimensão ridícula do mundo em geral, a urgência de transformações radicais em nossa sociedade etc. É claro que o livro não é só denúncia e transgressão, há também poemas que tentam brincar com a linguagem e abrir novas rotas de fuga para a sensibilidade, tal como fazia o poeta catalão Joan Brossa, uma de minhas paixões atuais".
Ele revela que um feixe de poemas desses três livros da fase de denúncia social serão lançados na Espanha sob a forma de uma antologia bilíngue, com a tradução do premiado poeta Francisco Álvarez Velasco, sob o título 'Rebelión: poemas para estos tiempos". "Para mim, a Espanha é um país maravilhoso – morei lá em Barcelona, entre 2015 e 2016, e em Córdoba, entre 2020 e 2021, de onde retornei agora em março. Há um número enorme de grandes poetas na Espanha, em todas as suas línguas (castelhano, galego, catalão e basco), e a poesia lá é muito mais cultivada, lida e editada do que aqui", entende.
Aliás, no cômputo geral, Andityas acredita que sua poesia tem sido mais valorizada em Portugal e na Espanha do que no Brasil, e por uma série de razões. Ele cita como exemplo o livro "Lentus in umbra", que, lamenta, mal foi notado no Brasil. "Na Espanha, ao contrário, foi publicado por uma excelente editora, recebeu várias resenhas e está hoje esgotado. No Brasil, o fato de o título ser em latim e evocar um verso do poeta latino Virgílio soa como ostentação cultural, hermetismo, exibicionismo etc. Na Espanha não, é algo absolutamente normal e dentro das expectativas do que deve ser um poeta. Poesia não é só extravasamento, mas também trabalho, artesanato, tradição e traição ao mesmo tempo", pontua.
Confira, a seguir, alguns poemas comentados pelo escritor
"'Novos talentos' nasceu da indignação com a burrice generalizada que parece tomar conta do Brasil hoje, um país em que a cultura não só é desvalorizada, mas perseguida, ridicularizada, morta. Um país extremamente desigual que quer vender a imagem de ser composto só por gente boa que ama carnaval e futebol, mas onde se mata mais do que em Bagdá e é controlado por uma elite extremamente insensível e inculta, burra mesmo".
novos talentos
um menino
brinca
com um
dinossauro
de plástico
será um paleontólogo
estudará as
hierarquias ferozes
dirá de mil anos
ensinará o futuro
e na escama da
beleza talvez
se encontrará
mas nem pensa muito nisso
brinca e sabe
que amará as carcaças
amará
e se fará amar
na pedra lancinante
dos desertos
terá a cicatriz
sorrirá
verá o sol bem
vermelho
dará de si
o pão e o mel
dedilhará brânquias
será feliz
– neste país
graçasadeus
não tem essa
viadagem
não
vem cá
menino
qual é o
time
do dinossauro?
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"'Retrospectiva' até agora eu escrevi na véspera do natal de 2020, extremamente transtornado pela pandemia, pelo isolamento, pelos políticos canalhas, pelo medo da morte... É um dos poemas mais duros do livro".
retrospectiva até agora
sobreviver a 2020
não é pouca coisa
além da peste
que se esconde
em cada canto
em cada rosto
no ar no mar
onde você menos espera
o genocida fez
das suas
fez bem o seu
trabalho
o medo o cansaço
diários
amigos alunos seres
que viraram
telas
sem fim
o corpo derretendo
fundindo-se ao
sofá
e a manada
escrota
com suas carreatas
a ameaça da
II guerra civil
estadunidense
a extinção de mil
espécies
e a reflexão
sobre o que significa
ser vivo ser morto
ao mesmo tempo
ou nada disso
somem-se
as goladas de leite
da ku klux klan
a carestia
a desvalorização
da moeda
as máscaras da gucci
a moda dos estupros
o fim das florestas
o completo
completo
domínio dos
canalhas
a morte de
gente boa
e a completa
completa
consciência
de que estou
preso
a um país
fascista
cujo
verdadeiro
problema
não é o genocida
sobreviver a 2020
não é pouca coisa
por isso em transe
escrevo
este poema
e torço para que
não
justifique
o título deste livro
ainda sonâmbulo
ainda angustiado
ainda insone
ainda assustado
cativo do pior dos
males:
esperança
Sobre o autorAndityas Soares de Moura Costa Matos é escritor, tradutor e professor universitário na Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona.
Desde 2012 coordena na UFMG o Grupo de Pesquisa O estado de exceção no Brasil contemporâneo. Publicou os livros de poemas "Lentus in umbra" (edição própria, 2001; edição espanhola com tradução de Francisco Álvarez Velasco, Trea, 2002), "OS enCANTOS" (in vento, 2003), "FOMEFORTE" (in vento, 2005), "Algo indecifravelmente veloz" (antologia poética editada em Portugal, Edium, 2007), "Auroras consurgem" (7Letras, 2010), "Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas" (Urutau, 2019) e "Poemas para a noite dos mortos-vivos" (Urutau, 2020), além do livro de contos "Oroboro" – lançado em Portugal (Temas Originais, 2010) e no Brasil (7Letras, 2012) – e a prosa autobiográfica "A parodia vivente ou a pavorosa sciencia de vêr: memórias de um pé quebrado" (Urutau, 2021).
O seu ensaio "A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois García" foi publicado em Portugal (Universitária, 2004) e na Galiza (Trad. Amelia Piñeiro Santorum, Toxosoutos, 2009). Organizou o volume "Lírica de Camões: uma seleção" (Crisálida, 2004) e traduziu "A rosa dos claustros" (Crisálida, 2004) da galega Rosalía de Castro, Isso (em parceria com Leonardo Gonçalves, Universidade de Brasília, 2004), "Com/posições" (Crisálida, 2007) e "dibaxu/debaixo" (Edium, 2007; Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/Universidade Federal do Ceará, 2009), todos do argentino Juan Gelman, além da plaquete "À boa teta e outros quatro licenciosos poemas da França renascentista" (Crisálida, 2005). Traduziu e publicou no Suplemento Literário de Minas Gerais poemas do catalão Joan Brossa.
Serviço
Lançamento do livro "Poemas póstumos: fantasias para rapazes e moças durante o genocídio"
Andityas Matos
Onde: Livraria e Café Quixote (rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi)
Quando: Nesta quinta-feira (14), das 18 às 21h.
Entrada franca.
O livro pode ser adquirido ao valor de R$ 50.
Em tempo: simultaneamente, também acontecerá o lançamento do livro "Urbano - Constelação", de Rita Velloso.