“Eu já estava devendo isso aos meus ancestrais”, diz a cantora Áurea Martins, 82, sobre o lançamento de “Senhora das Folhas” (gravadora Biscoito Fino), disco que chegou às plataformas digitais ontem, o emblemático 8 de março, Dia Internacional das Mulheres. O álbum é uma homenagem às curandeiras, rezadeiras e benzedeiras, personagens do universo feminino sagrado, guardiãs da sabedoria popular, da fé e da tradição. Em 50 anos de carreira, é a primeira vez que Áurea visita um repertório que joga luz em seu passado, sua raça, sua identidade e suas memórias.
A estreia, por assim dizer, trouxe uma autocobrança que mexeu com corpo e mente da cantora. “Fiquei morrendo de medo, ficava acordada a noite inteira, andava pra lá e pra cá pensando que não ia conseguir, que ia decepcionar as pessoas”, conta Áurea a O TEMPO enquanto vigia o arroz no fogão.
O produtor e diretor musical do disco, Lui Coimbra, está no apartamento onde ela mora, no bairro do Catete, na cidade do Rio de Janeiro. “O almoço vai sair tarde hoje, lá pelas 16h. Vai ter arroz, feijão, jiló e peito de frango”, ela revela o cardápio.
“Senhora das Folhas” foi gravado no segundo semestre do ano passado. Nas sessões de estúdio, Áurea Martins pôde celebrar suas avós, Tia Zélia, que a ensinou a ler e escrever, e Dona Francelina, uma senhora rezadeira do bairro de Campo Grande, no Rio, onde a cantora nasceu e cresceu. Era Francelina quem rezava para as crianças e curava catapora, caxumba e outros males. Entrar com seu canto nesse terreno sublime fez com que Áurea se deparasse com manifestações místicas.
Às vezes, tinha de ir dormir com a luz do quarto acesa. Medo de fantasma, ela explica. “Quando cantei, pensei muito nessas pessoas, até sonhei com elas no meu quarto. Pedi desculpas por não ter reverenciado elas antes. O Brasil está precisando da sabedoria dessas pessoas”, pontua.
Para Áurea Martins, lançar mais um álbum aos 82 anos é um grito de resistência em vários aspectos e confronta diversos preconceitos. Áurea começou interpretando sambas-canção nos anos 1950, depois foi uma das poucas mulheres negras a entrar no circuito da bossa nova e do jazz no Brasil.
O primeiro disco, “O Amor em Paz”, veio em 1972. Ficou quase 20 anos sem lançar outro álbum, mas era artista sempre presente cantando na noite carioca. Áurea não tem dúvida: foi invisibilizada por ser mulher preta. Contudo, sempre quando sofria racismo, tratava de se fortalecer ainda mais. “Agora é que não vou parar”, ela dizia para si mesma em tom de incentivo e encorajamento.
Entre 2003 e 2012, Áurea gravou seis discos, e as novas gerações puderam, enfim, ter contato com a voz que Fernanda Montenegro um dia disse já não existir mais: “densa, uterina, insidiosa e doce”. Certa feita, o saudoso Aldir Blanc escreveu: “Em qualquer país que preze sua cultura, Áurea Martins seria incensada. No Brasil, terra de indigência e cascatas culturais, Áurea não aparece nas rádios nem na televisão. É como se privássemos o povo brasileiro de beber em fonte límpida. Cantar é, já disse e repito, o maior espetáculo da alma. E nossa própria alma nunca se redimirá sem a voz sagrada de Áurea”.
“Senhora das Folhas” traz essa voz mais sagrada do que nunca e alcança duas histórias ao mesmo tempo: a de Áurea e a de um Brasil repleto das tradições africanas e indígenas. O álbum também é esperança e um encontro da cantora consigo própria. Ela afirma ter absorvido sua verdadeira identidade com o novo disco.
“Ele é importante para ressaltar a história e a tradição das rezadeiras, curandeiras e benzedeiras do Brasil. Tudo que vem do negro é muito difícil de se aceitar nesse país, onde até queimam territórios de umbanda, e há um preconceito reinante com a cultura afro. Por isso eu digo: vão ter que me engolir”, observa Áurea.
“Eu tenho preconceito contra quem tem preconceito comigo. Eu tenho horror ao Sérgio Camargo (presidente da Fundação Palmares), por exemplo. Mas o que é dele está guardado, ele está mexendo com forças espirituais muito fortes”, ela acrescenta.
O disco
“Senhora das Folhas” começa com uma vinheta que precede a primeira faixa, “O Ramo”. Nela, como se numa comovente procissão estivéssemos, as Cantadeiras do Souza, num apelo à chuva feito por mulheres da cidade de Jequitibá, na região Central de Minas, evocam o divino: “Quando era meia-noite/ Lá no céu para um dia/ Cai sereno, cai/ Nos cabelos de Maria/ Valha-me Nossa Senhora/ Meu divino Espírito Santo/ Hoje é primeiro dia/ Que nesta terra eu canto”.
Num diálogo com a música popular brasileira contemporânea, Áurea, dividindo os vocais com Moyseis Marques, regravou o rap “A Rezadeira”, de Projota, que chega com novos arranjos e citações de “Relampiano”, de Paulinho Moska e Lenine. O afropop “Ponto das Caboclas”, de Camila Costa, também demonstra toda a juventude e fome de conhecimento da cantora. “A gente sempre deve procurar os mais jovens e as culturas das periferias, né? Eu acho muito importante. Adoro Emicida, Mano Brown… o que é aquilo? Eu paro para ouvir”, ela comenta.
“Araruna” reflete o canto da etnia Parakanã, do Pará, e Áurea declama o poema “Vô Madeira”, da poeta Julie Dorrico, pertencente ao povo Macuxi. “Na Paz de Deus”, que tem participação da rezadeira Vó Joaquina, e “Banho de Manjericão” honram a tradição dos melhores sambas. Ao longo das 11 faixas, Áurea Martins abre as portas de seu universo de cura para poemas e rezas. Violões, tambores, violoncelos, flautas, guitarras, violas caipiras, cavaquinhos e percussões deságuam em rios e florestas. Áurea acredita na cura pelo amor e pela música.
Mulher preta orgulhosa de suas raízes, ela sabe que ali, no estúdio, enquanto colocava voz nas canções de seu novo disco, muitas e muitas mulheres, de norte a sul deste país, de cada quilombo, morro ou terreiro, também sussurravam seus cantos para todo mundo ouvir. “Fiz esse disco com as rezadeiras, essas matriarcas. Sem elas o Brasil não sobrevive. São uma força da natureza”, diz Áurea Martins.