O francês (que vive e trabalha em Lille) François Andes veio ao Brasil pela primeira vez como artista em residência convidado pelo Festival Artes Vertentes - Festival Internacional de Artes de Tiradentes, em setembro de 2015. Alguns meses depois, mais precisamente em novembro, recorda-se ele, houve o primeiro rompimento de barragem em Minas Gerais, o de Bento Rodrigues, um acontecimento que lhe afetou profundamente, endossando também as preocupações com a questão ambiental que já vinham rondando a sua cabeça. "Desde aquela primeira experiência, venho desenvolvendo um contato frequente com o Brasil", conta ele, acrescentando que, neste ínterim, passou a desenvolver um trabalho com o curador Luiz Gustavo Carvalho. "Tive a oportunidade de efetuar momentos de residência artística no Rio de Janeiro e em Salvador. Momentos preciosos nos quais conheci artistas fantásticos e pude tecer laços com o povo brasileiro", aponta Andes, que, dias atrás, passou por Belo Horizonte para inaugurar a individual "A Travessia do Desastre", em cartaz na Celma Albuquerque Galeria de Arte até o dia 12 de novembro.
A mostra reforça a dobradinha com Carvalho, curador da iniciativa. E é o próprio Luiz que explica à reportagem o nome da exposição. "Para nós, o desastre é essa forma gananciosa que levou ao recorte geoeconômico que temos no planeta Terra. Esta ambição perverteu a tal ponto as relações do homem com o planeta que colocamos em risco a nossa própria existência. Por meio de analogias entre diversas mitologias propomos diversos pontos de partida para atravessarmos a desastrosa realidade que nos circunda".
O curador acrescenta que vivemos um tempo no qual não é mais possível se eximir diante de todas as mudanças que vivenciamos e testemunhamos diariamente. "Cremos que a arte oferece uma potente ferramenta para reflexão e mudança das relações entre o homem e a natureza".
Os trabalhos que compõem a exposição foram concebidos, revela seu material informativo, a partir de um diálogo artístico-curatorial viabilizado durante os diversos períodos de residência artística de Andes, em países como o Vietnã, Camboja, Coreia do Sul e Brasil, entre 2016 e 2020. São trabalhos em grafite sobre papel, carvão sobre papel e pigmentos coreanos sobre papel.
Três intervenções artísticas foram feitas por ele nas paredes da galeria, especialmente para esta exposição. "Também serão inspiradas por paralelos entre diversas mitologias, desenvolvendo um diálogo com as obras expostas", diz, pontuando que não houve nenhum trabalho preparatório realizado para estas intervenções. "Isso me paralisaria. Para o momento de criação, é necessário esquecer todo o trabalho de pesquisa realizado previamente".
No cômputo geral, um aspecto que se faz presente são paisagens fluviais e florestais, que ensejam levar o público a um citado "encontro de culturas, permitindo a reflexão sobre as fronteiras entre os “territórios selvagens e os espaços civilizados, reino privilegiado de Ártemis, na mitologia grega, Oxum, na cultura ioruba, e das deusas-mães, no Vietnã". Andes detalha: "Tudo o que é inerente ao homem me interessa. Foi justamente este interesse que me levou à mitologia. Para inúmeras culturas os mitos e toda a cosmogonia construída é uma tentativa de explicar a nossa existência e a forma com a qual nos relacionamos com o meio ambiente".
Ele salienta que as obras que integram a exposição são o fruto de um "pingue-pongue intelectual" com o curador. "A nossa troca influenciou diretamente a obra e creio que seus textos são uma reflexão à obra. Obviamente, ambos já nos interessávamos por mitologia e eu trouxe para essa troca toda a bagagem literária e visual que acompanhava o meu trabalho desenvolvido em torno da mitologia, que iniciei há 20 anos".
No conjunto apresentado, Luiz Gustavo Carvalho destaca o grupo de 15 painéis intitulado "Os Preparativos". "Trata-se de uma obra impressionante, criada a partir de um princípio chamado 'cadáver esquisito' (cadavre exquis), um jogo inventado na França em 1925, pelo movimento surrealista, no qual se subvertia o discurso literário convencional. O cadáver esquisito tinha como propósito colocar na mesma frase palavras inusitadas e utiliza-se da seguinte estrutura frásica: artigo, substantivo, adjetivo e verbo". Outra curiosidade a respeito do método, prossegue ele, é que este agrega mais de um autor. "Cada um deles intervém da maneira que deseja, porém, dobrando o papel para que os demais colaboradores não tenham conhecimento do que foi escrito. Desta forma, os traços da margem de um desenho são os pontos de partida de outro desenho, o qual pode ser ligado ao primeiro e, ao mesmo tempo, pode ser independente". François Andes transpõe esta lógica para o universo visual e "joga" com ele próprio. "Isso resulta numa quantidade de painéis que apresentam entre eles inúmeras possibilidades de junções, ou seja, uma obra fadada ao infinito", complementa Carvalho.
Serviço
Exposição “A Travessia do Desastre”, de François Andes
Quando: Até 12/11/2021
Onde: Galeria Celma Albuquerque (rua Antônio Albuquerque, 885, Funcionários - 3227-6494)
Horário: De segunda a sexta-feira, de 10h às 19h; aos sábados, de 10h às 13h