Hollywood consegue potencializar muitas das manifestações emocionais humanas através de seus filmes. Alegria, raiva e pânico ganham novas dimensões quando interpretadas nas telas e a fantasia ali produzida acaba servindo como uma espécie de antídoto contra nossas verdadeiras crises no mundo real.
"O terror, por exemplo, lida diretamente com o fascínio que nós temos com o lado macabro das coisas. Isso acaba criando uma dicotomia, pois ao mesmo tempo que nos instiga e intriga, não sabemos muito bem como lidar com a sensação de estranheza", explica Carlos Primati, pesquisador de cinema voltado ao gênero fantástico.
"É basicamente uma pequena experiência de morte na qual você está em pleno controle da situação. Você sabe que é seguro assistir aquele filme porque o risco de morte é essencial para a obra, mas não vai afetar você diretamente. Esse é o fascínio principal dos filmes de terror. Cogitar o que pode existir no além, porém em uma situação controlada e segura", completa.
Os dez longas que compõem "Cults do Terror", mostra inédita que a plataforma digital CineHumbertoMauroMAIS apresenta em formato online a partir desta sexta-feira (16), têm exatamente esta característica: explorar nossos medos através do cinema para nos ajudar a lidar com as dificuldades do dia a dia.
A programação, que vai até 16 de maio, conta com a exibição de produções do chamado "lado B do terror", ou seja, obras pouco valorizadas na época que foram lançadas, que acabaram sendo cultuadas ao longo dos anos e viraram referenciais para o gênero.
A maratona conta também com sessões especiais dos projetos "História Permanente do Cinema" e "Cinema e Psicanálise", além de debates com diretores, professores e críticos cinematográficos.
Embora produções de terror não sejam novidades na programação do Cine Humberto Mauro, a mostra investiga o tema a partir de trabalhos pouco conhecidos do grande público.
"O diferencial desse recorte e o enfoque da mostra é trazer a luz à uma série de produções que evidenciam processos de realizações específicos dentro do escopo do gênero terror", comenta Bruno Hilário, que divide a curadoria de "Cults do Terror" com Julio Cruz, Mariah Soares e Vitor Miranda. "E isso numa época em que o estilo ainda não estava no seu auge dentro da indústria cinematográfica norte-americana", complementa.
Bruno explica que a seleção se guiou principalmente em filmes aclamados que foram feitos sem altos investimentos.
"Esse contexto de produção [filmes cults] é muito ligado ao baixo orçamento, uma vez que os grandes estúdios estavam lidando com uma grande crise na época em que muitas dessas produções foram feitas – crise essa que foi liderada principalmente pelo fracasso de bilheteria de obras que foram extremamente onerosas", diz.
"O interessante é que esse contexto de baixo orçamento é muitas vezes contraditório, pois ao mesmo tempo que traz limitação estrutural para a plena realização dos filmes, pode representar também um grande sopro de inventividade para o cinema", detalha o curador.
Grande parte dos filmes do recorte datam dos anos 1950 e 1960, e muitos deles nunca foram exibidos em mostras anteriores.
“A maioria dos longas que estão na programação são pouco lembrados e foram criticamente mal recebidos quando foram lançados no mercado. Isso acaba sendo muito curioso porque esse período gerou grandes obras que deixaram um legado inventivo no cinema", pontua Bruno sobre a importância dos filmes escolhidos.
"Achamos importante revisitar essas obras, que possuem a atuação de tantos artistas icônicos, e respondem a grandes transformações sociais de meados do século passado”, destaca.
Terror como tema social
Além das questões metafísicas e emocionais, a mostra também se debruça sobre o panorama social que inspirou essas produções.
Para isso, a seleção conta com longas que pertencem a um subgênero do terror chamado hagsploitation – palavra derivada dos termos em inglês “hag”, expressão pejorativa usada para chamar uma mulher de velha e feia, e “exploitation”, que significa “exploração”.
O intuito é mostrar como esse estereótipos acabaram escancarando o preconceito de Hollywood contra atrizes mais velhas.
"Esse estilo de cinema trazia atrizes de meia-idade em papeis de mulheres loucas, que enlouqueceram por meio de algum tipo de trauma", explica a pesquisadora de cinema e criadora de conteúdo, Yasmine Evaristo.
Comum em muitas produções dos anos 1930 até meados dos 1960, o estilo acabou popular após o sucesso do filme “Baby Jane”, o qual recebeu cinco indicações ao Oscar, incluindo o de Melhor Atriz para Batte Davis.
Segundo Yasmine, esses filmes eram a forma com que as grandes produtoras seguiam explorando essas atrizes com a desculpa de que elas "não saíssem dos holofotes".
"É interessante e importante pensar que hoje em dia não é um gênero explorado. Ele caiu em desuso porque deixa muito aberto esse preconceito que existe com atrizes mais velhas em Hollywood", avalia.
Os dois longas que estão na programação da mostra são "Almas Mortas" (1964), de William Castle, com Joan Crawford no papel principal, e "Com a Maldade na Alma" (1964), do diretor Robert Aldrich, estrelado por Bette Davis.
"Nesses dois filmes, duas atrizes que foram grandes divas do cinema, consideradas mulheres bonitas e atraentes, depois de um certo momento quando envelheceram passaram a ser excluídas na indústria. Isso deixa claro como o cinema tratava a figura feminina com pouco apreço", acrescenta.
Outro destaque da mostra é "A Noite dos Mortos Vivos" (1968). Único filme da agenda protagonizado por um ator negro, a obra é importante por sua crítica à sociedade norte-americana da década de 1960, e por tocar no tema da luta por igualdade social propaganda por mulheres e negros naquele período da história.
"A gente tem passado por um processo de mudança. Hoje em dia é possível ter mais pessoas negras tanto nas direções quanto nos roteiros e principalmente nas produções, mas esse filme mostra como a indústria do cinema preteria as minorias em tempo não tão distante. Embora os tempos estejam mudando, a representação do negro ainda é um problema", constata Yasmine.
"É necessário entender que cinema e produção de arte constroem perspectivas no imaginário e isso já está tão consolidado que é preciso muito trabalho para reverter os danos já causados", finaliza.
Serviço
O quê: Mostra "Cults do Terror''
Onde: Na plataforma CineHumbertoMauroMAIS .
Quando: De 16 de abril a 16 de maio
Preço: Gratuito
Os debates da "História Permanente do Cinema", acontecem nos dias 16/04 (sexta-feira), 20/04 (terça-feira), 22/04 (quinta-feira), 27/04 (terça-feira), 06/05 (quinta-feira), 13/05 (quinta-feira); já os bate-papos do projeto "Cinema e Psicanálise", estão agendados para o dia 30/04 (sexta-feira).
As transmissões acontecem sempre, a partir das 19h, pelo Canal da FCS no Youtube e também pela plataforma CineHumbertoMauroMAIS.