Luiz Millan ainda estava finalizando a produção do DVD "Dois por Dois Ao Vivo" (2018) quando uma avalanche de ideias veio à sua mente. "É sempre assim que acontece comigo", brinca o compositor paulistano, que tratou de não dispersar de modo algum aquela inspiração. E daí, veio "Achados & Perdidos" (distribuição Trattore), seu mais recente disco, lançado pouco antes da pandemia. "Como os dois últimos álbuns traziam basicamente um repertório instrumental, quis mudar o processo e colocar, aqui, também uma parte cantada", conta ele. O resultado, adiciona o artista, "tem uma pegada de música brasileira 'tradicional', bossa nova, a antiga MPB, que hoje já não é mais popular, jazz e até um pouco de clássico. Um estilo que desponta bem natural no meu trabalho, sem ser pensado", pontua.
"Achados & Perdidos" transita por canções próprias e releituras. Das autorais, a maioria é de cinco a dez anos atrás. As duas mais recentes são "Madrugada" (parceria com Michel Freidenson) e "'Só com você" (com Plinio Cutait). A faixa "Movimento" chama a atenção por ter sido feita há nada menos que 40 anos! "Na verdade, quando ainda estava na faculdade", conta ele, acrescentando que seu processo de criação é, de fato, muito variado. "Às vezes, me sento ao piano, faço uns acordes e surge uma melodia; outras, no violão, e em ainda em outras, sem instrumento algum. Faço letras para músicas, mas também vice-versa. Acho que tem a ver com o estado de espírito, que favorece com que a criatividade apareça de uma forma muito natural. Certamente é intuitivo. Não tem nada de racional ou de teoria musical", elucida.
No quesito parcerias, Luiz Millan destaca duas experiências que aparecem no álbum. A primeira, "Morungaba", feita com o pianista Moacyr Zwarg. "Um dia, a gente fez a melodia a quatro mãos... Nos divertimos muito! Fizemos com muito prazer e, depois, fiz a letra". A já citada “Madrugada", por sua vez, emergiu em uma noite de insônia. "O que, veja, é raríssimo para mim. Mas não gostei da parte B (provavelmente já devia estar sonolento) e entreguei para o Michel Freidenson terminar. Temos muita afinidade musical e ele fez um B maravilhoso".
As releituras, na verdade, são uma novidade em sua obra fonográfica. "Pela primeira vez resolvi gravar músicas de outros autores. Veja, nosso país não tem memória cultural. E acredito que precisamos valorizar nosso rico patrimônio", explica. O critério inicial foi o de músicas que ele já apreciava sobremaneira, mas que, na sua opinião, estavam um tanto quanto relegadas, apesar de terem feito sucesso. Um exemplo é “Samba da Pergunta”. "Essa música foi gravada por Tim Maia, Joyce Moreno, Elis Regina e João Gilberto, mas estava meio esquecida nas últimas três décadas". Essa, Luiz Millan até ia cantar sozinho. Mas quando a cantora Giana Viscardi, que participou de sete faixas do petardo, soube que iria entrar no CD, foi logo pedindo para participar. "E o fez de forma maravilhosa!", exulta ele.
“Brazil com S”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, outra das que ganharam nova leitura, é, segundo Millan, "uma bossa sensacional, com uma letra super-divertida". E tem, ainda, “Outro Cais”, de Eduardo Gudin e Costa Netto. "Desde a primeira vez que ouvi, me apaixonei por essa música". Outra faixa que traz uma música de outros autores é “Não Pode Ser”, de Marcos e Paulo Sergio Valle. "Eu acho que, na verdade, ela nunca foi regravada por ninguém antes. E tem uma historia curiosa. Quando eu era garoto, nos anos 1960, um amigo tinha esse disco do Marcos Valle. E sempre que eu ia na casa dele, pedia pra ouvir. Tanto foi que, um dia, ele tirou o disco da prateleira e meu deu. Tenho guardado até hoje!", brinda.
Chama a atenção, ainda, a foto que ilustra a capa. "Foi feita na Universidade de S. Paulo (USP), na Faculdade de Medicina, quando entrei lá, em 1976. Uma curiosidade: nessa turma, tinha muita gente ligada às artes, como eu. No prédio, havia um teatro de arena e a gente fazia shows todo mês. Era uma festa, lotava. Chamava-se 'Reunião Musical'. Como o CD tem esse título, 'Achados & Perdidos', achei pertinente colocar essa foto. Aliás, uma amiga, muito maldosamente (risos), depois que viu a capa, me disse que, quando for me apresentar agora, pode dizer: ''Muito prazer, meu nome é Luiz, ex-gato'", diverte-se.
Impossível também não citar o time de músicos que o acompanha nesta empreitada. "Verdade, são sensacionais. Um timaço. Só tem feras. Começa com os arranjos do pianista Michel Freidenson, e de Giana Viscardi, que tem um suingue incrível. Fora esses mestres da música instrumental de São Paulo, como Sylvinho Mazzucca (baixo), Léa Freire (flauta), Edu Ribeiro (bateria), Camilo Carrara (violão) e Adriana Holtz (violoncelo). Quase um ano planejando e a gravação demorou exatamente dois fins de semana, para você ter um ideia da sintonia desse grupo".
Antes de encerrar a entrevista, a pergunta inevitável: como estão sendo os dias de quarentena. "Não tenho conseguido compor. Essa quarentena mudou minha vida profissional. Sou médico psiquiatra e não tenho sentido espaço para compor. Quando tudo isso passar, não sei como a cultura irá evoluir. Também tem a questão de aglomeração. Talvez esse lance de apresentações online aumente. Felizmente a tecnologia esta aí para nos ajudar nessas horas", argumenta, meio conformado.
Saiba mais: Formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, profissão que exerce desde 1982, Millan nunca abandonou a música, que entrou em sua vida na infância. Estudou piano e violão e, em 1980, chegou a gravar um LP coletivo, com colegas da USP. Lançou seu primeiro CD, "Entre Nuvens", em 2011. Tem ainda os CDs "O Dia em que São Paulo Floresceu" (2014) e "Dois por Dois" (2016), este, com Moacyr Zwarg, Teco Cardoso e Michel Freidenson, que rendeu o DVD/CD "Dois por Dois Ao Vivo" (2018), citado no início da matéria.
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