Crítica

“Democracia em Vertigem”: pronome pessoal intransferível

Roteirista Juliana Magalhães ressalta a capacidade poética de Petra Costa ao lançar olhar sobre o Brasil

Por Juliana Magalhães
Publicado em 26 de junho de 2019 | 17:03
 
 
 
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Discorrer sobre cinema é muito fácil. Fazer cinema é que é o grande impasse. Sempre comento com os amigos que o cinema é uma das artes mais difíceis de realizar que existem, pois é basicamente a reunião de todas as artes: som, imagem, fotografia, literatura e mais um milhão de variáveis que precisam atuar em conjunto para que um filme funcione minimamente. Se uma dessas linguagens vacila, a consequência é uma vacilação mútua que faz com que aquela estrutura convulsione.

Mas discorrer sobre cinema é fácil. Um pouco de domínio de teoria cinematográfica, uma lista de filmes assistidos, algumas referências e uma capacidade de ler símbolos, interpretar metáforas. Às vezes, nem isso.

O filme “Democracia em Vertigem, da diretora Petra Costa, parte de uma perspectiva pessoal que jamais convulsiona. Uma leitura histórica que parte dessa perspectiva individual. Não por acaso, uma das primeiras sentenças disparadas pela narradora no início do filme é: “eu e a democracia temos quase a mesma idade. Eu achava que em nossos trinta e poucos anos, estaríamos pisando em terra firme”. O “eu” é a glória para a obra de muitos poetas e artistas de toda a ordem e isso não é embaraçoso quando feito como um exercício de empatia e não apenas como uma forma de carícias ao próprio ego.

No caso de Petra, o seu eu não se fecha em si, mas se expande a muitos outros. Torquato Neto diz: “Eu sou como eu sou. Pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível”. Vale ressaltar aqui, nesse trecho do para sempre marginal Torquato Neto, que o eu é uma coisa que se inicia e nem sempre termina. O eu não é. Ele vai sendo. Na medida do possível e do impossível. Reflexão essa, que também se esbarra em Guimarães Rosa meio a essa travessia: “As pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas. E não seria essa a grande beleza?”

“Democracia em Vertigem” não tenciona e nem se apresenta como uma verdade absoluta sobre um momento político do Brasil. É o olhar de Petra que inaugura e conclui a narrativa, e que, como todos os olhares que lançamos sobre os momentos que vivemos ou sobre os abismos que a história nos insere, são incompletos, inacabados.

Vivemos um momento extremamente conturbado e dramático da história. Nenhuma leitura será o bastante. Nenhuma obra de arte irá saciar por inteiro nossa sede de compreender conjunturas. E isso não é problemático. Isso é um sintoma do nosso tempo: a contradição e a incompletude.

Sobre o romantismo de Petra Costa, é um dos elementos dela que nos propõe à emoção e à catarse. Primeiro, porque ela, para além de qualquer coisa, é uma excelente poeta. O romantismo é também um dos inúmeros jeitos de fazer cinema. É o que faz dela ser ela como diretora. E das grandes. 

A narrativa poética que permeia toda a obra da diretora desde o curta “Olhos de Ressaca”, que ela fez sobre o amor antigo dos seus avós, já é uma identidade, que faz do cinema de Petra Costa o cinema de Petra Costa.

Outro ponto essencial para que se faça corroer as críticas – entre modestas e razoáveis – que têm se exigido da diretora o rigor do real, é: cinema é um recorte. É necessário que se faça escolhas em nome de uma narrativa interessante e que muitas ideias sejam condensadas ali naquele pequeno espaço.

Não se faz um bom filme de duas horas com uma hora de autocrítica e meia hora de lamento. Um filme precisa de muito mais. Cinema não é vida. Uma vida inteira não cabe no cinema, por uma questão muito simples: a vida tem infinitas horas. O cinema, quando soa infinito, tem de quatro a cinco. Então, por isso, é necessário que se faça escolhas. E respeito imensamente as escolhas de Petra. Essa coisa que passeia entre a tragédia e o gozo. Eis o infinito de Petra: a capacidade de dançar sob as brasas. E bem.

* Juliana Magalhães é escritora, roteirista e redatora. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto. Autora dos livros “14 Cartas para Ler Enquanto se Espera” e “Dias na Superfície”, também já escreveu textos literários e críticos sobre arte, no jornal “Outras Palavras”, na página NoSet e no Pilhas&Pilhérias. Atualmente, estuda artes cênicas na escola Célia Helena, em São Paulo, e trabalha como roteirista num filme sobre a vida do artista Belchior.

 

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